Assim ando eu, atrasadíssima em publicar neste espaço os meus achismos sobre as leituras que vou fazendo. Li este Os Rapazes de Nickel em Agosto e estamos em Dezembro. Era suposto escrever conforme fosse terminando cada livro, o que não sendo falta de vontade é só mesmo falta de tempo.
Foram várias as opiniões positivas que fui retendo sobre o escritor Colson Whitehead, pelo que quando tive possibilidade comprei o livro mencionado. Lê-se efectivamente com bastante facilidade pois a escrita é muito acessível. Conhecia outros casos de Instituições de cariz social que ao longo dos anos foram sendo encerradas, maioritariamente nos EUA, Canadá e Austrália. Infelizmente não choca ninguém que ao longo de decádas se tenha verificado que estes locais não só não reuniam condições para acolher jovens e crianças, como proliferavam os mais variados abusos, fosse por questões ideológicas, por ausência de fiscalização e profissionais adequados, demonstrando um completo abandono do Estado perante os que mais necessitavam de ajuda e protecção.
Encontrei uma entrevista do escritor em que este conta um episódio que aconteceu com o próprio quando era um jovem estudante e que toca, em certa medida, no que acontece também à personagem principal.
Não posso dizer que em alguma parte da história esta se tenha apresentado original ou inesperada, não sendo este aspecto negativo ou positivo, apenas me deixou a impressão que várias vezes se optou pelo caminho do facilitismo. Como já mencionei noutras ocasiões não sou particularmente adepta de personagens rasas e extremamente empáticas. É uma questão de gosto pessoal. Compreendo, ainda assim, as escolhas do autor. Foi o final que mais me agradou e que me agarrou ao universo retratado por Colson. É uma leitura que vale o tempo do leitor e que representa muito bem como uma simples escolha, numa questão de alguns minutos, pode mudar por completo uma vida quando se vive num país estruturalmente racista, como os Estado Unidos (aliás, há algum país ocidental ex-colonial que não o seja?).
Tentarei ler outros trabalhos do Sr. Colson Whitehead, ansiando que sejam um bocadinho mais elaborados que este.
Esta publicação vai ser um bocadinho chata, longa e não sei se será tanto sobre este livro ou sobre mim.
Bruno Candé foi assassinado por ser negro, por um ex-militar branco, que ainda vivia alimentado pela retórica supremacista de que era superior e que podia fazer o que quisesse contra um negro, pois que a vida de um negro de nada vale comparada com a do branco. Foi o segundo caso de homicídio racial a ganhar destaque nos meios de comunicação do país, sendo que o primeiro ocorreu em 1995. Mais um episódio na longa série "Portugal nao é racista".
O trabalho da Catarina Reis é impecável, retratando a vida de Candé de forma muito respeitosa e sem explorar a tragédia, o que seria fácil tendo em conta a forma como faleceu mas que não corresponderia à pessoa que era e à vida que levou até que esta lhe fosse roubada. Também não procura ser um livro sobre racismo. É uma biografia, contida, mas interessante e uma leitura que não fazia mal nenhuma a algumas pessoas que tão recentemente tem vomitado umas frases dignas do tempo da outra senhora (o mesmo tempo em que habitava o assassino do Bruno Candé).
Nasci e cresci num bairro social em Lisboa. Na altura, Lisboa tinha núcleos de bairros de barracas, bairros grandes e pequenos, próximos de áreas residenciais. Era ali que se juntavam os imigrantes e os emigrantes. Gente de fora, fora, e gente de dentro, do interior, das aldeias e zonas rurais que procuravam uma vida digna na capital. Eram os homens das obras (como o meu padrinho e o meu tio), as mulheres de limpeza (como a minha madrinha), as cabeleireiras (como a minha mãe), a costureira (como a minha avó) e o chauffeur de praça (como o meu avô), o motorista de camiões (como o meu outro avô) e as domésticas (como a minha outra avó). O Bairro das Marapinhas, onde morei até aos 6/7 anos, quando terminaram a construção dos prédios e fomos realojados, era um sitio engraçado. As casas, feitas com o bom jeito das mãos que construiam a cidade, tinham água e electricidade, eram pequenas mas suficientes para sobreviver, sem luxos. Outras eram autenticos barracões, sem qualquer condição de habitação, devido à urgência da necessidade de um telhado e quatro paredes. Algumas tinham dois andares, sótão. Outras alpendres. Tanques para lavar a roupa à mão. Havia hortas. Banhos de mangueira no Verão. Um baloiço feito de cordas pendurado numa árvore. Muita "floresta" em torno. Eu chamava-lhe "floresta" e durante muitos anos era este o nome que nós, miúdos, dávamos ao que hoje em dia é conhecido por Parque da Belavista. O Bairro das Marapinhas ficava colado ou até dentro daquele mato verde com árvores grandes. É nas Marapinhas que me recordo perfeitamente da primeira vez que pensei sobre cores de pele. Recebi no natal a minha primeira nenuca. Eu sou branca e a nenuca era negra. Estava toda contente com a minha nenuca nova, fingindo que era minha filha. Até que um vizinho nosso, negro, fez uma graçola qualquer com a minha boneca. E a seguir "de que cor sou eu?" e eu terei respondido "castanho", ao que ele replicou "e tu?", "eu sou cor de pele". E ele rindo-se muito alto termina com "então queres ver que isto aqui não é pele também?" (enquanto beliscava o seu braço). Toda a gente se riu à minha volta, o vizinho negro também. Aquilo incomodou-me, rirem-se de algo errado que eu tinha dito. Nunca gostei de me sentir ignorante. Pelo contrário achei aquele homem muito esperto. "Queres ver que isto aqui não é pele também?".
Portugal, como outros países que em tempos construiram um império à custa da exploração e ocupação de terras alheias, teima na recusa de ser um país estruturalmente racista. Quando a população negra começa a chegar a Portugal em grande número e não tem poder económico para arrendar um quarto, ou porque qualquer possibilidade de habitação lhe é negada pois que são negros e não se quer negros a viver ao lado de brancos, não resta alternativa que não deitar mãos à terra e construir, imitando o que a população branca pobre e sem escolaridade já tinha feito anos antes, motivada exactamente pelo mesmo abandono do Estado, que se revela ainda hoje, com outras agravantes, na incapacidade de garantir o direito à habitação. Parece que uma boa parte da população portuguesa se esqueceu de como era Lisboa, dos bairros de barracas que apareciam que nem cogumelos pela cidade. Aliás, como era e como é, porque as barracas foram substituídas por prédios mas a fragmentação social continua a ser a base.
Estamos em Novembro, no mês passado morreu mais um homem negro às mãos da polícia, num bairro social. E há que frisar sempre, em todas as notícias e em todas as publicações, que tudo ocorreu num bairro. Bairro, bairro, bairro. Repetido à exaustão. Nunca ouvi tanto comentador a falar sobre os bairros. E falam sobre os bairros como se conhecessem efectivamente os bairros de que falam. E falam dos bairros como se nós, que somos do bairro, fossemos uma espécie de seres estranhos, diferentes, predestinados a certos e determinados actos. Se a policia matar mais um, qual é o mal? Não é racismo. Vamos lá ter calma, que em Portugal não há sequer racismo. Se a polícia só visita os bairros em formato GOE, a agredir e ameaçar com shotgun até a velhota que vai coscuvilhar à janela, é obviamente porque é tudo bandidagem. A lei é diferente para quem tem o azar de nascer num bairro social. Agora até nos dizem que se um pai cometer um crime, a família passa a viver debaixo da ponte que é para aprender a escolher melhor os seus familiares. Tipo, nascessem noutra família.
Eu sou mulher, branca, já não vivo no bairro mas o bairro estará sempre em mim. Crescer em Chelas antes de Chelas ser cool e lhe apagarem o nome, ensinou-me tudo o que sou. Ensinou-me a ter medo da polícia. As filmagens dos actos das forças de intervenção que agora começam a ser mostrados nos meios de comunicação, como a patrulha e a paragem/revista de moradores, não se apresentam como novidade nem são uma resposta ao desacatos. É a rotina, é a norma e é indiscriminado. Acontece porque são pessoas pobres, marginalizadas e reina o sentimento de impunidade.
Disseram imensas coisas interessantes nos últimos dias. Uma que gostei particularmente foi "a polícia não entra nestes bairros". Bem, eu não conheço todos os bairros sociais do país mas este argumento também foi muito usado quando um polícia assassinou o rapper Snake (numa "fuga" de carro, negro e morador de um bairro, enfim, são coincidências)... Eu fico meio confusa sabem? É que Chelas tem várias zonas, é uma área ampla. Na Zona N1 havia uma esquadra. Na zona J havia uma esquadra. Na zona I havia uma esquadra.Lembro-me pelo menos destas três enquanto moradora. E tinham policias lá dentro! Ou seja, havia esquadras com polícias a trabalhar e essas esquadras estavam dentro de um bairro social. Chocante, eu sei. Se a polícia não entra no bairro, como é que há esquadras nos bairros? Como é que os policias que lá trabalham chegam em segurança, se estão dentro de um bairro rodeados de moradores altamente agressivos, que odeiam a policia e são, mesmo mesmo mesmo, bandidagem e escumalha sem qualquer noção de respeito pela autoridade? Se há esquadras e polícias no bairro porque é que não são estes polícias a actuar na zona e a fazer policiamento de proximidade? Devo ser super burra por não conseguir compreender isto. Ou então, será...Será que é falso que a polícia comum não consegue entrar nos bairros? Será que é mais lucrativo para certos grupos de poder alimentar uma narrativa importada de outros países europeus (onde de facto a polícia comum não circula) e desta forma fomentar o medo, reforçar o abuso policial e justificar o assassinato indiscriminado de cidadãos destes bairros? Será que sinalizar os bairros como zonas de risco cria um ciclo na relação polícia-moradores, que nada de bom gera? É que é fácil associar crime a uma área geográfica que está permanentemente vigiada, controlada, pela polícia com a justificação do combate ao crime. Vá, é viver num pseudo-estado policial. Tantos anos de combate ao crime e estes bairros continuam a ser um poço de gente criminosa? O que faz concretamente o Estado para combater o crime, pergunto eu. Ninguém acha estranho que a retórica seja a mesma há 40 anos? Qual é o nível de eficiência da nossa polícia que, passados tantos anos, nada resolve e continuamos a ser vistos como criminosos? Eu proponho estender a nossa realidade urbana ao resto do país. Já que o resto do país aplaude e defende que está tudo bem neste esquema. Quem não deve não teme, certo? Aplique-se a todas as ruas as práticas policiais que vigoram nos bairros sociais.
PS: os que defendem a morte de "bandidos" às mãos de agentes do estado, são os mesmo que se calam quando isto,isto ou isto e mais isto acontece.
PS2: Há policias que são profissionais e desempenham adequadamente as suas funções. Tal como há outros que não tem qualquer capacidade para vestir uma farda, muito menos trabalhar em orgãos de poder e junto da população. Reconhecer os segundos não anula os primeiros, pelo contrário, só os valoriza. É pena é que quem manda nisto tudo dedique mais esforços em defender os segundos em vez de garantir direitos laborais e uma carreira digna aos primeiros.