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17
Fev25

Os Nossos Irmãos Feridos de Joseph Andras

Cláudia F.

Fernand Iveton foi um comunista argelino, filho de mãe espanhola e pai francês, que lutou pela independência da Argélia contra a ocupação colonial francesa e foi condenado à pena de morte, sendo assassinado em Fevereiro de 1957. É a história de Iveton, da relação com Hélène e da sua prisão que acompanhamos no livro de Joseph Andras.

No fim da Segunda Guerra Mundial existia nas sociedades colonizadas a esperança da independência e da retirada dos países ocupantes. Esta esperança era comum a todas as colónias de países europeus que haviam lutado contra o nazismo e deram origem a vários processos, mais ou menos violentos, de independência. A Argélia foi um desses países e o conflito um dos mais intelectualmente discutidos. A França, como força colonizadora, recusou a autonomia argelina, comprometendo os valores defendidos anos antes ao lutar contra a ocupação nazi. O pouco tempo passado entre a libertação da França (e da Europa) dos fascistas e a guerra contra a libertação dos países colonizados colocava à vista de todos a enorme contradição em que se encontravam as forças políticas governantes. Defendiam e iam contra os mais básicos princípios de autonomia e liberdade (e parece que não houve qualquer evolução, não é? Ainda nos debatemos com a mesma ausência de escrúpulos). Fruto desta incoerência, crescem idealistas como Fernand e outros resistentes, não só em solo ocupado mas também na própria França.

Fernand junta-se ao partido comunista argelino (PCA) aos 16 anos. Posteriormente alinha-se com a FNL e leva a cabo a acção pela qual é preso: colocar uma bomba na fábrica onde trabalhava. Colocar bombas é mau? É. Neste caso, era uma forma de luta e Fernand programou estrategicamente o local para a bomba e a hora da detonação de forma a que não atingisse qualquer trabalhador, antes afectasse a maquinaria e assim contribuísse para desequilibrar o sector económico. A bomba nem sequer explodiu. Fernand foi preso, torturado, julgado e assassinado para dar o exemplo, para denegrir a imagem dos combatentes da resistência e principalmente por ser considerado um traidor da pátria, um francês a lutar contra o seu povo.

Dificilmente não seria uma leitura satisfatória. Gostei particularmente da forma extremamente humana como Andras retrata Fernand, um homem sonhador e inteligente, fiel aos valores mais universais e também como, na época, as famílias dos resistentes acompanhavam as suas prisões e experimentavam a angustia da impotência perante uma condenação grotesca, violentíssima, às mãos do Estado.

A primeira leitura de 2025 não podia ter corrido melhor. Os Nossos Irmãos Feridos é um favorito que aconselho a todos. Talvez represente uma realidade que julgávamos ultrapassada e que, pela nossa própria inacção e ignorância, me parece cada vez mais próxima. Entenda-se: a da opressão e repressão.

O livro serviu de inspiração ao filme De Nos Frères Blessés, de 2020, que não tive ainda a oportunidade de ver. Artigo sobre esta adaptação aqui.

 

15
Fev25

Os do Ano Passado

Cláudia F.

Sei que estas publicações são por norma feitas em Janeiro, mas eu nunca estou encaixada no ritmo da maioria: apresento (a quem? não importa) a lista das minhas leituras favoritas do ano 2024. Li cerca de 57 livros e escrevi a minha opinião sobre todos eles neste blog - salvo erro, posso ter falhado um ou outro. Utilizo o goodreads, onde todos os anos estabeleço uma meta de leitura que por norma ultrapasso (com excepção do ano em que fui mãe e li 2 livros). Gosto da sensação de ainda ler algumas obras após atingir o objectivo a que me propus. Eu, que não faço desporto, sinto-me como os atletas se devem sentir depois de passar a meta e ainda terem capacidade fisica para correr mais um bocadinho. Foi um ano de várias leituras medianas, umas quantas mázinhas e outras que nem me dei ao trabalho de concluir, abandonando, e 19 livros maravilhosos que têm um lugar especial na estante (os que não foram lidos através da biblioteca) e no coração.

  1. Os Mutilados - Hermann Ungar
  2. Acolher - Claire Keegan
  3. Um Homem Em Declínio - Osamu Dazai
  4. A Partir de Uma História Verdadeira - Delphine de Vigan
  5. Um Amor - Sara Mesa
  6. Puro - Nara Vidal
  7. A Solidão dos Números Primos - Paolo Giordano
  8. O Lado Negro da Mente: Histórias Reais da minha Vida como Psicóloga Forense - Kerry Daynes
  9. Vista Chinesa - Tatiana Salem Levy
  10. Roma, Temos Um Problema - João Francisco Gomes
  11. Desaparecer na Escuridão - Michelle McNamara
  12. Out - Uma Saída - Natsuo Kirino
  13. A Uma Hora Tão Tardia - Claire Keegan
  14. Mrs. Caliban - Rachel Ingalls
  15. O Quinto Filho - Doris Lessing
  16. Um Artista No Mundo Transitório - Kazuo Ishiguro
  17. Mrs. March - Virginia Feito
  18. Gente Comum: Uma História da PIDE - Aurora Rodrigues
  19. A Idade Frágil - Donatella di Pietrantonio

Parece-me uma boa colheita! Vamos ver como corre este ano, se julgar pelas leituras de Janeiro vou bem lançada.

12
Fev25

A Idade Frágil de Donatella Di Pietrantonio

Cláudia F.

Algumas leituras parecem, de alguma forma e sabe-se lá porquê, estar predestinadas a beirar a perfeição. Já me tinha cruzado com A Idade Frágil, provavelmente quando pesquisava por pré-lançamentos interessantes. Daí que quando o vi numa livraria, mesmo ali uns dias antes do natal, decidi que era um bom acrescento aos outros livros que havia comprado para oferecer a mim própria, e acabou mesmo por ser o segundo da pilha a ser lido ainda em Dezembro.

Começo já por me repetir mas isto tira-me do sério: parem de comparar escritores nas capas dos livros. É um pesadelo que parece não ter fim. Induz as pessoas em erro, cria expectativas que não deviam existir em torno da escrita, da história e das personagens, condiciona os leitores a procurar ecos e semelhanças, neste caso da Ferrante, num livro que não tem qualquer marca da escritora, além de limitar a Pietrantonio, como se a sua obra não valesse por si só, precisando de uma muleta literária para vender. E não precisa, é um bom livro. Obviamente que em momento algum no decorrer da leitura senti qualquer proximidade com as obras da Ferrante (que adoro) compreendendo, por isso, quem vai à procura dela nestas páginas e se sente defraudado.

Ultrapassando esta questão, A Idade Frágil tornou-se o último favorito de 2024. O ser baseado num crime real que ocorreu em Abruzzo, cidade onde a escritora cresceu, foi meio caminho para me manter muito curiosa. Tentei vasculhar e procurar mais informações complementares do crime de 1997 mas só me cruzei com artigos em italiano, língua que não domino, por isso não sei onde termina a ficção e começa o realismo no relato do homicídio das duas jovens e na fuga da rapariga que sobreviveu. No livro, Lúcia foi uma grande amiga da sobrevivente enquanto criança e adolescente, pelo que testemunhou a atmosfera em torno do desaparecimento e desenrolar da investigação. Anos mais tarde, adulta e mãe, é confrontada com paralelismos e ecos de um mundo ainda tão agressivo contra as mulheres, através da sua filha Amanda. A acção no presente decorre no pico da pandemia, Amanda desiste da universidade em Milão e retorna a casa, na aldeia. Volta uma jovem diferente, fechada e deprimida. A escolha de manter o leitor em dúvida sobre a violência exercida contra Amanda e nunca desvendar o que de facto ocorreu, evitando a exploração gratuita do acto, foi uma decisão inteligente, visto que já estamos a acompanhar o crime ocorrido no passado pelos olhos de Lúcia. A escritora conseguiu estabelecer um bom ritmo e uma caracterização suficientemente realista para me fazer sentir que as personagens existiam, tal como a história ali relatada. Gostei da forma como os silêncios se transformam em diálogos e as ausências (de pessoas, de emoções) ocupam espaço na narrativa. A escrita é directa e simples, numa história que não sendo de uma complexidade enorme, trabalha temas que me agradam como a questão do medo, da violência de género, da relação mãe-filha. 

Dispensava a questão em torno da venda do terreno e da filha que se revela activista, mas enfim, não se pode ter tudo. É uma obra-prima? Não o diria. Mas li em duas tardes, completamente concentrada e envolvida na história que Donatella me apresentou e isso é imensamente satisfatório. Irei ler outras obras da escritora no futuro.

02
Fev25

A Baleia de Paul Gadenne

Cláudia F.

No natal presenteei-me com livros da Antígona, aproveitando uma baixa de preços que a editora aplicou umas semanas antes. Não é que seja uma novidade oferecer-me livros nessa época, nunca tinha era ocorrido serem todos da mesma editora. O livro A Baleia foi o primeiro a ser lido e não podia ter corrido melhor.

Nas cerca de 40 páginas acompanhamos Pierre e Odile numa caminhada, um passeio até à praia para verem a carcaça de uma beleia branca que deu à costa e ficou a decompor-se na areia. Perturbador? Fascinante? Profético? Que significado retiram as duas personagens da morte daquele gigante dos mares? É uma bonita e dura reflexão sobre a morte, o ciclo que se fecha, ao qual nenhum ser escapa. Foi uma leitura muito satisfatória. 

Entretanto, ao procurar mais informações sobre o escritor (que faleceu aos 49 anos vítima de tuberculose, tendo passado os últimos anos em sanatórios e quartos alugados, de onde aliás terá escrito grande parte da sua obra) cruzei-me com uma curta baseada neste seu texto. Enquanto lia pensava que daria um belo filme, o ambiente em que as personagens se movem é bastante cinematografico e é uma pena que a curta não esteja disponível, mas a julgar pelas fotografias creio ter sido uma adaptação bem feita. Aguardo com esperança que talvez vá parar ao youtube, um dia.

Pequenos livros, grandes histórias.

31
Jan25

Os Rostos de Tove Ditlevsen

Cláudia F.

Desconfio que nem sempre programo com eficácia as minhas leituras. Ultimamente tem sido recorrente ler livros que são semelhantes, seja nos temas abordados, quanto no estilo da escrita. Acabo por sentir que estou a perpetuar a mesma leitura em diferentes livros e escritores. Na realidade nem se trata de "programar", já que me limito a ler o que me apetece, sejam livros meus ou que requisito na biblioteca. Se em casa estou reduzida aos que compro, já na biblioteca requisito muitos, quase sempre no limite máximo legal, simplesmente porque vejo que lá estão vários que quero mesmo muito ler e claro, tenho de os ler todos com o máximo de brevidade. 

Os Rostos foi lido no seguimento de Quem Sabe e ainda que a história seja claramente diferente soou-me com grande proximidade, a atmosfera em torno da saúde mental das narradoras, a linha ténue entre loucura e sanidade e a forma como o núcleo familiar se mistura nas suas existências. Confesso que gostei mais de Tove Ditlevsen. Não foi uma leitura espectacular, iniciei entusiasmada e interessada na história, senti um quebra de intensidade durante a estadia da personagem na ala psiquiátrica (ali pelo meio do livro) e começava já a aborrecer-me. Não esperava muito do desenrolar da história mas o final convenceu-me, adorei o toque misterioso com que Tove concluiu a história. Fechei o livro com aquele sorriso meio tonto do género "ah, caraças, apanhaste-me!". Pretendo ler outros livros da autora.

Artigo interessante sobre a escritora aqui.

27
Jan25

Quem Sabe de Pauline Delabroy-Allard

Cláudia F.

Mais um livro requisitado na biblioteca e que se encontrava na minha lista de futuras compras.

Quem Sabe de Pauline Delabroy-Allard foi uma leitura agridoce, daquelas que me divide e sobre a qual tenho muita dificuldade em decidir se gostei ou não. Primeiro, aborrece-me profundamente encontrar comparações a outros escritores nas capas, contracapas, avaliações ou comentários no livro. Induz desde logo a um elevar ou diminuir de expectativas que é, a meu ver, desnecessário. Eu não queria ter a sombra da Duras colada a esta história, por mais que encontre espaço para ali vislumbrar semelhanças. Preferia ter chegado a tal conclusão sozinha. Segundo, não sou a maior admiradora deste estilo, um fluxo de consciência que quase não permite que exista história. Foi assim que me senti. Mais de metade dos pensamentos de Pauline não acrescentam grande coisa. Depende do que o leitor entender, nas referências e pontes que conseguir estabelecer. Eu não quero ter esse trabalho todo por uma história que me deixou de interessar antes do meio do livro. Gostava que se explorasse mais. Tudo. A escritora lança umas coisas para o ar, aguça a nossa curiosidade e não desenvolve. Eu sei que é ficção, sei que na literatura tudo é possível, mas dei por mim (demasiadas vezes) a pensar "alguém, alguma vez, teria feito isto, desta forma, por estes motivos?". Em resumo: não tenho paciência para estes livros. Controlei a vontade de abandonar e ainda bem, pois a última parte foi francamente a melhor. O envolvimento de Pauline com a casa, a escrita, o isolamento e a forma como a realidade se misturou com a ficção da leitura que Pauline abraçou na recta final, foi muito bem escrito, bonito e frenético.

20
Jan25

Gente Comum: Uma História na PIDE de Aurora Rodrigues

Cláudia F.

Em Agosto fui visitar o Museu Nacional Resistência e Liberdade, que é como quem diz a Prisão de Peniche. Era domingo, a entrada gratuita para residentes nacionais, estava bastante pessoal, incluindo famílias com crianças (era o nosso caso) e turistas. É um Museu de visita obrigatória, seja para quem é consciente da história do país ou para os que fecham os olhos à realidade passada - afinal é mais aconchegante acreditar que os outros são uns exagerados do que assumir que, vivendo aquela época, provavelmente estariam no lugar dos opressores e nunca nos pés dos oprimidos. Como já aqui escrevi antes, não há espaço para confusões, nem complexidades. Ou se é antifascista ou se é fascista. Ou se defende a democracia ou se apregoa a ditadura. Não há meio termo, nem lugar para dúvidas. Quem tem o coração no sítio certo dificilmente percorre aquele espaço sem sentir o peso e a revolta pelos que lá passaram. Se lagrimei ao entrar n'O Segredo? Óbvio. Limpei as lágrimas discretamente para a minha criança não se aperceber e segui com a visita.

Já estávamos de saída e, claro, parei para "dar só uma vista de olhos" na oferta livreira do Museu. Comprei alguns livros, um deles este Gente Comum de Aurora Rodrigues. Li em Dezembro. Não é o primeiro (nem o último) livro que leio sobre o actuação da PIDE para com os presos políticos e as torturas que levavam a cabo para os quebrarem e obterem informações. Felizmente existe muito material literário escrito pelos próprios resistentes, além do trabalho de recolha de memórias feito por historiadores. Não foi, por isso, surpreendente ler o relato pormenorizado (dentro do possível) das prisões de Aurora, dos interrogatórios e das torturas. Surpreendente foi sim, sem qualquer dúvida, ganhar consciência do quanto uma mulher consegue aguentar, resistir, pela defesa de um conjunto de ideias e valores. Porra, que mulher admirável! Após o assassinato do seu amigo Ribeiro dos Santos, estudante e militante do MRPP, junta-se à resistência e ao MRPP. Leva uma vida dupla, entre ser estudante, espalhar panfletos e pintar murais, até ser presa pela primeira vez a 03 de Maio de 1973 na prisão de Caxias, sendo libertada após três meses. Sofreu todas as torturas habituais aos resistentes antifascistas: agressões físicas, psicológicas, tortura do sono, tortura do afogamento, espancamentos, privação de visitas. Nunca foi formalmente acusada, nem julgada. Sabe-se que foi sinalizada durante o funeral de Ribeiro dos Santos, onde estavam vários agentes da PIDE infiltrados. Sabe-se que foi perseguida e que usaram os meios disponíveis para a capturar. Para o regime uma estudante de 21 anos era uma ameaça e tinha de ser silenciada. Volta a ser presa já depois do 25 de Abril, no ataque à sede do MRPP pelo COPCON, juntamente com outros militantes e os seus familiares. Efectivamente estes foram tempos de uma riqueza partidária fascinante e bastante confusa - MRPP, UDP e PCP andavam às turras, envolvidos em alianças com outros partidos, atacavam-se na rua, em manifestações...Todo um potencial de união perdido à custa de guerras e guerrinhas.

Aurora Rodrigues formou-se em Direito e é magistrada. Tem actualmente 72 anos. Uma mulher que todos deveríamos conhecer.

Trabalho do Público sobre as antifascistas portuguesas aqui com o relato de Aurora Rodrigues. 

17
Jan25

Mrs. March de Virginia Feito

Cláudia F.

Trouxe da biblioteca os livros De Bestas e Aves de Pilar Adón, A Voz das Mulheres de Miriam Toews e Mrs. March de Virginia Feito. Eram três livros que tinha há algum tempo em vista para comprar e fiquei bastante entusiasmada quando os encontrei na biblioteca. Confesso que depois da leitura dos dois primeiros já estava resignada e agradecida por não ter gasto dinheiro com nenhum deles. Foram três leituras em jeito de sobe-escada. Uma péssima, uma mediana e no final, apanhando-me desprevenida e já sem expectativas, eis que Mrs. March me agarra e fascina, tornando-se um dos últimos favoritos de 2024.

Mrs. March é um livro curioso. Cativou-me logo nas primeiras páginas e não fui capaz de o pousar. Seguimos a vida de uma mulher de classe alta, casada com um escritor e mãe de um menino (não me recordo ao certo da idade, mas ali entre os 8 e os 11 anos). Inicialmente pensei que a história giraria em torno da relação entre o casal, numa espécie de episódio psicótico de Mrs. March após perceber que o marido se inspirou nela para criar a personagem principal do seu último livro, uma vulgar prostituta, que se tornou um sucesso de vendas. Mas a escritora parte deste princípio para nos fazer entrar na mente perturbada de Mrs. March - bastante perturbada, exactamente como eu gosto - e às tantas a questão da inspiração literária e da vergonha social que atinge Mrs. March extravasa para outros patamares de delírio.

A teia de pensamentos que vai surgindo em reacção à realidade envolvente demonstra-nos uma mulher profundamente humana, nas suas falhas e defeitos. A pressão social para corresponder ao padrão da elite e representar o papel já tantas vezes levado a palco, desde a infância onde a família deposita todas as expectativas sobre o que somos e como seremos em adultos, até às pressões nos relacionamentos, nas amizades, no trabalho, e por aí vai. A personagem foi permanentemente limitada e moldada, desenvolvendo respostas e mecanismos de defesa que só a própria conhece. Quem é verdadeiramente Mrs. March? E do que é capaz?

“If the bad things we have done were often exposed, we would all look like villains”

Adorei cada capítulo, cada acrescento na história, nas dúvidas que me foi plantando conforme avançava na leitura. A introdução da possibilidade do crime é deliciosa. Reconheço, no entanto, a crítica de alguns leitores ao apontarem que a autora mistura vários tópicos, correndo o risco de perder o foco. Para mim funcionou lindamente. É intrigante, tem graça, lê-se num ápice.

A capa de Mrs. March é um pesadelo para mim. Demasiadas vezes olhei para o livro de forma a certificar-me que não estava de facto uma barata a passear-se pela saia azul. Foi o mais próximo que tive de sofrer um ataque cardíaco provocado por um livro. Nem os nervos e irritações que alguns me infligem chegou a este ponto.

Entrevista da escritora para o Comunidade de Cultura e Arte aqui

13
Jan25

A Voz das Mulheres de Miriam Toews

Cláudia F.

Quando sei que um filme é baseado num livro tendo a priorizar a leitura em vez do cinema. O problema é, pois claro, quando não o sei. Ouço falar bem dele, a história parece-me interessante e vejo. Só posteriormente, ao pesquisar qualquer coisa, é que me apercebo que existe livro. O mal está feito. Dificilmente a leitura me vai saber tão bem quando já conheço a história. Foi o caso com A Voz das Mulheres da escritora canadiana Miriam Toews.

Não se tratando de uma má leitura, perdeu o encanto por já conhecer o desenrolar da história e o seu desfecho. A força da narrativa está no desenvolvimento do pensamento crítico do grupo perante a realidade que o atormenta e a exploração desta evolução no filme foi muito mais intensa e interessante, em comparação ao que senti com a leitura. A quantidade de personagens é confusa e as suas particularidades individuais perdem-se no formato da narração. Estes apontamentos menos bons não invalidam a qualidade da historia que nos é apresentada. A reflexão proposta sobre as seitas religiosas, principalmente na anulação do individuo através da manipulação que se propaga de geração em geração, ampliando a repressão que se reflecte nos mais pequenos actos diários. Um grupo de homens, de diversas idades, droga e viola mulheres e crianças dentro da colónia, durante anos e com o conhecimento de outros homens. As mulheres organizam uma assmbleia onde discutem o seu futuro. Ficar, fugir ou lutar. Alterar o funcionamento da comunidade, aceitar os abusadores, resignar-se, expulsar os homens, matá-los, abandonar tudo o que sempre conheceram e iniciar uma nova vida. É uma discussão rica em possibilidades e Toews trabalha muito bem os conflitos que advêm de cada decisão.

Em resumo: leitura mediana, ideia interessante, narração q.b. aborrecida, execução mais bem conseguida no filme. E por a realizadora ser a magnifica Sarah Polley, aconselho fortemente que vejam o filme A Minha Vida Sem Mim.

08
Jan25

Um Artista do Mundo Transitório de Kazuo Ishiguro

Cláudia F.

Nunca tinha lido Kazuo Ishiguro. Dos seus trabalhos apenas conhecia a adaptação de Nunca Me Deixes. Foi sugestão do clube de leitura que frequento ler Um Artista do Mundo Transitório (ou Flutuante), o livro que me calhou era semelhante a este, portanto bem velhinho. Este ano a temática do clube de leitores não foi propriamente apelativa (para o meu gosto), sendo esta leitura do ano a única que realmente me entusiasmou.

Seguimos Ono, um velho artista, pintor amplamente admirado e reconhecido, que quando se apresenta a possibilidade da sua filha mais nova vir a ser pedida em casamento, inicia um processo de auto-análise e reflexão sobre o passado e as suas acções em nome do nacionalismo japonês durante a Segunda Guerra Mundial. Eu nada sabia sobre este livro, ou sobre o seu escritor, para ser sincera sempre me tinha passado ao lado, pelo que iniciei a leitura com baixíssimas expectativas. Há melhor que ser positivamente surpreendida e, semanas após o final da leitura e entre outros livros entretanto lidos, ainda dar por mim a reflectir na história de Ono? Não, não há. É deste tipo de coisas que se fazem os grandes livros. Para mim, claro. Outros terão definições diferentes do que é que torna uma leitura uma experiência memorável.

Então vamos mergulhando na sociedade japonesa, na forma como a ocupação (no pós-guerra) e a influência americana se misturaram no ideal japonês, nos traumas de guerra que marcaram gerações, em como os ideais nos moldam, permanente ou momentaneamente, nas acções que levamos a cabo em prol de valores superiores e como lidamos (ou não) com as consequências das nossas escolhas e posições políticas. É muito bonito a forma como, tal como numa pintura, Kazuo nos oferece diferentes tonalidades, contrastes e perspectivas. Compreendi que a leitura que eu fiz não foi exactamente a mesma que outros leitores do clube fizeram - alguns focaram-se mais na relação avô-neto-família, outros na sociedade japonesa (tão distante da nossa), outros na arte japonesa (como se desenvolvia a relação entre os pintores e as obras, os mestres, etc). Eu foquei-me por completo na questão política, sempre com a curiosidade de perceber o que temia Ono ter feito no passado que colocasse em causa o bom casamento da filha. Depois, a forma como Ono lida com a culpa (a negação, a desvalorização dos seus actos e decisões), o peso do passado e como sempre se reflectirá no futuro. É delicioso o jogo que Kazuo estabelece com o leitor, ao colocar perante nós um idoso, aparentemente sério, respeitoso, inteligente, que nos manipula até ao final do livro, colocando a sua velhice e falta de memória sobre o passado em perspectiva, diminuindo o seu papel nas situações mais críticas. Ele afirma sem afirmar, conta sem contar. E aos bocadinhos, exigindo bastante atenção, vamos percebendo a complexidade da personagem de Ono, que nada mais é que a representação de um certo Japão, que existiu numa época muito particular mas que se perpétua na história da humanidade. Somos mesmos uns seres estranhos.

Verdadeiramente genial. Um favorito.

Deixo aqui uma entrevista de 1989 a Kazuo Ishiguro que muito gostei de ler.

 

 

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