Li A Dama Oculta e a tradução é assustadoramente má. Senti que estava a ler uma mistura entre português e português-brasileiro. Algumas decisões linguísticas não me fizeram muito sentido pelo que não fiquei particularmente interessada em pegar num dos outros dois tão depressa, com receio que a tradução esteja ao mesmo (des)nível. Sei que são edições baratinhas mas não me parece que justifique. Enfim, não foi tão mau ao ponto de prejudicar gravemente a leitura. Nem se trata de uma língua ser superior a outra, não tenho nada contra edições em português-brasileiro desde que eu as escolha sabendo de tal característica. Cresci com as novelas da Globo e passei o livro todo a imaginar a Iris como uma personagem da novela da noite.
Ethel Lina White foi uma senhora inglesa que viveu entre 1876 e 1944, numa família de classe média-alta, tendo começado a escrever cedo e tornando-se um dos principais nomes da literatura policial/suspense da época. Em Portugal só se encontra este livro publicado, o que é uma pena.
Entramos no mundo de Iris Carr, uma jovem mulher, rica e órfã, que vive livremente, sem amarras, em permanente ócio com os seus amigos, sem casa própria, em viagens nos lugares mais exóticos e luxuosos da Europa. Assim a encontramos, meio aborrecida com os amigos, decidida a não os acompanhar e fazer a viagem de regresso a Londres sozinha. Nesta fase há a sensação de que os bons momentos estão prestes a desaparecer, já que todos os hospedes se estão a preparar para abandonar o hotel e regressar a Inglaterra de comboio. A premonição de que algo obscuro e estranho se aproxima, no decorrer de Iris se encontrar sozinha e por isso mesmo exposta a perigos, ela que está sempre rodeada de pessoas, é aqui explorado de forma magistral. Uma afronta social, a dama viajar sem acompanhante, extremamente ousado para a época e representativo da independência de Iris. O grosso da acção decorre no percurso de comboio, onde Iris se cruza com várias personagens, sendo uma delas uma velha senhora, tipo governanta, que segue para Inglaterra após trabalhar na casa de um grande senhor de um país de Leste. Acontece que Iris adormece e quando acorda não há sinal de tal senhora, tão pouco os restantes passageiros que partilham a cabine se recordam dela estar presente. É este o mistério. Quem é a senhora? E onde é que ela está?
Iris mergulha num estado psicótico tentando responder a estas questões com a ajuda (ou falta dela) de dois cavalheiros ligados à filosofia. Um desaparecimento num comboio que faz a ligação entre vários países ao longo de dias, praticamente sem paragens, de onde é impossível sair, ainda para mais sem que outras pessoas o notem.
Por ser mulher, jovem, solteira e viajar sozinha, Iris é vista como louca, perturbada, histérica. Completamente descredibilizada. Ameaças de prisão, hospitalização forçada num hospício a meio do caminho e uso de medicação para se manter calma. Ethel White caracteriza assim não só a figura feminina mas também como a sociedade a vê e julga, em 1936. A atmosfera opressiva em torno da personagem de Iris é não só realista como ainda plausível de acontecer nos dias de hoje.
Uma história bastante interessante e bem escrita, intensa e claustrofóbica, feminista, que deixa o leitor com a dúvida permanente de que partes são reais ou alucinação. Vamos lendo página após página envolvidos na confusão e dúvida de Iris, ansiando para que ela consiga escapar ilesa. Não é qualquer escritor que consegue trabalhar cenários fechados com mestria e Ethel White, felizmente, oferece-nos uma obra verdadeiramente inquietante.
Não vi a adaptação que Hitchcock fez em 1938 e que se tornou um clássico do cinema, além de ser amplamente reconhecido como um dos seus melhores trabalhos, portanto desconheço se o filme é fiel à obra ao ponto de não mascarar algumas alinhas que para mim são fulcrais para o entendimento da personagem de Iris Carr. Talvez seja uma boa escolha para ver agora durante a época natalícia.
Não sou pessoa de poesia. É uma falha como leitora que reconheço. Ainda assim li Decadência. Apaguei por completo da memória. Encontrei como livro do dia na FLL o Satânia. Por ser prosa, foi uma leitura muito mais apelativa. Reúne dois contos, Satânia e Insaciada, e a conferência De Mim.
Como aqui já referi quando escrevi sobre Maria Archer, frequentei um curso online da Bertrand dado pela Lúcia Vicente, referente a estas duas escritoras. Estava a fazer a colecção do Público* sobre escritoras portuguesas censuradas durante o Estado Novo, comprei o Decadência, que salvo erro foi dos primeiros a sair. Pouco ou nada sabia sobre Judith Teixeira. Neste artigo do Público sobre como vivia a comunidade lgbtqi+ em Portugal durante o Estado Novo e nos anos que o antecederam, temos um resumo da perseguição que a escritora sofreu:
Vou poupar-vos à minha opinião sobre grupinhos religiosos. Judith, que até ao ataque destes virgens ofendidos, era até bem considerada nos círculos literários e na classe instruída consumidora das artes, continuará a ser atacada e sem que ninguém a defenda, ao contrário do que sucedeu com os outros escritores visados pela Liga.
Perdeu-se a Judith que, de 1927 a 1959 (ano da sua morte), nada mais escreveu. De Satânia, gostei mais do primeiro conto do que do segundo mas o que achei realmente interessante foi a conferência De Mim, em que a escritora defende uma escrita livre de amarras sociais, honesta e longe do moralismo vigente. É um texto, quase um manifesto, em defesa da liberdade criativa, do futurismo e de si própria.
Actualmente encontram-se online alguns estudos feitos sobre a sua obra e vida (do pouco que se conhece). Sobre a sua bissexualidade ou homossexualidade há duas linhas: os que a consideram lésbica e vêem na sua obra a honestidade de quem escreve sobre si própria ou os que analisam os seus escritos no contexto patriarcal, onde a mulher é fruto do desejo, e nesse caso, Judith escreveria da mesma forma que os seus pares escritores, apesar de ser mulher; esta segunda tese também se apoia no caso de Judith ter sido casada duas vezes, o que para mim é completamente irrelevante - muitos homossexuais e lésbicas vivam em relacionamentos heterossexuais, cumprindo assim a norma para evitar a ostracização social. No fundo nunca saberemos mas faz-me sentido que na incerteza e pelo conteúdo da sua obra seja pelo menos inserida na categoria de literatura queer/lésbica.
Este livro foi uma leitura agradável, ainda que a dose de sentimentalismo e tragédia, presente nos dois contos, seja em demasia para esta leitora.
*Neste ponto já estou fartinha de escrever sobre a colecção aqui, ainda por cima está esgotada, pelo que nem aparece no site do jornal, para conseguir redireccionar para lá quem tiver interesse.
Desconhecia a história de Maria Adelaide da Cunha até me cruzar com o livro de Manuela Gonzaga.
Julguei que pelo volume do livro ia chegar a uma certa altura em que a leitura se tornaria aborrecida, afinal haveria tanta informação assim sobre um acontecimento tão lá para trás no tempo? Pois não aconteceu. Foi uma leitura bastante agradável, pouco dada a laivos de romance histórico, sucinta aos factos e acontecimentos a que a escritora conseguiu aceder através de documentação armazenada na casa da família Cunha.
"tive acesso a relatórios médicos detalhados, processos policiais, registos de tribunal, actas, bilhetinhos, cartas, diários, fotografias, livros publicados na época, assinados por psiquiatras, advogados, jornalistas, gente directa ou indirectamente envolvida na trama. Passei muitas semanas a consultar jornais, sobretudo A Capital e o Diário de Notícias de 1919 a 1923. Cruzei informações. Recolhi testemunhos orais, pois conheci pessoas que ainda chegaram a conhecer Maria Adelaide depois dela ter saído do Hospital Conde de Ferreira. Visitei os locais onde tudo isto se desenrolou. E, passei meses e meses na biblioteca da Senhora de São Vicente a ler e anotar de fio a pavio a documentação encontrada no fundo falso de uma escrivaninha. Eram as peças que Alfredo da Cunha coligira, para montar a teia da sua defesa e do seu ataque. Tudo, e por iniciativa dos novos donos, devidamente catalogado e arrumado em pastas. Centenas de documentos. Muitos milhares de páginas. Fascinante."
Fascinante, sem dúvida. De realçar que o que mais me interessou foi a manipulação da opinião pública e do circulo de proximidade de Maria Adelaide contra a própria, manipulação essa feita com base nas teorias cientificas mais "avançadas" da época na área da psiquiatria: as mulheres que fugiram ao padrão dos "bons costumes" eram histéricas, depressivas e claramente incapazes, portanto a solução estava numas temporadas enclausuradas em hospitais para doentes mentais, privadas de contacto com o exterior, onde a única coisa que crescia era o sentimento de injustiça. É realmente sinistro olhar para os problemas mentais, na figura da mulher, e associa-los ao útero ou ao clitóris; uma mulher decidir trair o seu marido jamais poderia ser um acto de uma mulher "sã", segundo os maiores psiquiatras portugueses como Egas Moniz ou Júlio de Matos (que seguiam a corrente de pensamento internacional). Não fosse Maria Adelaide uma senhora da alta sociedade e talvez nunca tivesse conseguido escapar. Aliás, quantas Marias Adelaides não terão existido sem terem deixado rasto?
Este livro acaba por complementar a leitura d'O Papel de Parede Amarelo de Charlotte Perkins Gilman, ainda que de forma não programada. Quando peguei neste Doida Não e Não não tive presente que tinha lido outro com a mesma temática recentemente.
Após ler, pesquisei um pouco sobre a Sra. Maria Adelaide e parece que há uma certa polémica em torno de um livro da Agustina Bessa Luís e na sua adaptação Ordem Moral. Não li Doidos e Amantes nem vi o filme, mas lendo esta entrevista não fiquei com vontade.
Muito interessante este O Papel de Parede Amarelo de Charlotte Gilman. De forma breve, mas bem conseguida, explora as perturbações de uma mulher cujo marido é também o seu médico. Tendo como diagnóstico um quadro de histeria depressiva, a cura passa por um período de afastamento social numa casa arrendada para o efeito e onde a narradora fica sob total controlo por parte do esposo. Isolada, sem ter com quem falar abertamente e privada de circular fora da casa, acaba por ficar obcecada pelo papel de parede amarelo do seu quarto.
É um conto realmente fascinante. Em poucas páginas a autora estabelece um clima de medo e loucura bem estruturado, lendo-se rapidamente e com um final que abre portas a múltiplas interpretações. Parece-me que há muita simbologia em torno do papel de parede, da figura feminina, de como a personagem (no seu delírio) é puxada para um mundo cheio de outras mulheres que lá habitam.
Mas que mulher foi Charlotte e que experiências marcaram não só a sua existência, como as suas obras? Nascida em 1860, filha de pai-que-abandona, vivia na pobreza. Por este motivo passava grandes temporadas com tias - mulheres politizadas, ligadas à escrita e educação. Era boa aluna, gostava de pintar e ler. Na escola manteve uma relação platónica com uma amiga, recusando o ideal romântico entre homem e mulher, até se casar em 1884. Um ano mais tarde é mãe. Casamento e maternidade intensificaram o seu estado depressivo (como não, certo?). E também ela, a par da protagonista do Papel, passa pelo "bed rest", nada mais nada menos que: deitada, sem esforços e excitações, vegetar na cama até novas ordens. Comprovou-se que este tratamento de eficaz tinha pouco. Com Charlotte quase a conduziu ao suicídio. Seguiu-se o divórcio. Volta a casar com um primo advogado. Envolve-se em várias associações políticas, utilizando a escrita para reforçar as suas preocupações sobre os direitos das mulheres, a figura feminina e a participação activa das mulheres na sociedade. Suicida-se após lhe ser diagnosticado cancro.
Aparentemente uma mulher para admirar não é? Só que não. A boa da Charlotte achava que os americanos negros eram um problema. E o que que era porreiro era agarrar nessa malta e fazer uma espécie de nova escravatura. Com certeza quando defendia o direito ao voto era o direito ao voto para mulheres brancas e instruídas. Não o resto da plebe. A eugenia estava em voga e sabemos bem como foi a primeira vaga feminista.
Ultrapassando que estamos a ler alguém racista, vale a leitura.