Roma, Temos Um Problema de João Francisco Gomes
Já escrevi e apaguei vários parágrafos. Não contaminar este texto com a minha opinião sobre religião/espiritualidade está a ser muito difícil. Respeito, obviamente, a liberdade religiosa de cada um desde que estas mesmas crenças não condicionem ou anulem as minhas liberdades e direitos como cidadã. E se deste livro se retiram várias reflexões, uma delas é exactamente como a Igreja Católica e os seus membros não têm o mesmo tratamento que uma pessoa comum perante o Estado e as suas leis.
O livro Roma, Temos Um Problema é uma leitura essencial para se compreender a raiz da problemática da sexualidade no contexto católico, como é que historicamente a Igreja lidou com a pedofilia e abuso de menores ao longo dos séculos, demonstrando um sistema articulado de protecção dos abusadores e branqueamento dos crimes. Tudo isto existe desde os primórdios do catolicismo, o que me deixou meio espantada, pois não contava que se encontrassem registos tão atrás no tempo sobre, por exemplo, que castigos se deviam aplicar a quem cometesse tais actos - ao estabelecer uma penalização reconhece-se a existência do acto e que esse mesmo acto é imoral e criminoso. Que o Vaticano tenha nos seus arquivos denúncias e relatos de crimes tão antigos demonstra que, ao contrário das declarações de vários dos seus representantes: 1. os abusos não são fruto da sociedade moderna, que se "teria afastado dos ensinamentos católicos" e por isso caído em desgraça; 2. deliberadamente se decidiu pela protecção dos ofensores, através de "programas de reabilitação e tratamentos" ou pela simples transferência para outra área geográfica, sem nunca os levar à justiça e, o mais monstruoso, sem os impedir de contactar com crianças.
O trabalho de investigação é excelente e coloca em perspectiva os mecanismos de defesa da Igreja e o desrespeito pelos sobreviventes, além da tentativa de silenciamento. Aponta várias referências, casos concretos e outros trabalhos jornalísticos e académicos. A estrutura e a escrita facilitam a leitura, que é feita de forma fluída sem se tornar demasiado pormenorizada. Fui lendo em simultâneo com outros livros, pelo simples facto de ser muito pesado ler de forma continuada sobre os abusos, e me causar tanta revolta, mantendo-me desperta quando já devia estar a dormir.
Em 2017 a Netflix oferecia-nos a série documental The Keepers, uma das melhores dentro do género. Recordo-me de ficar completamente vidrada enquanto ia avançando nos episódios. A série parte da investigação do homicídio de uma jovem freira e acaba a desvendar anos de abusos contra jovens adolescentes. Em 2006, a gigante Amy Berg realizava uma brutalidade de documentário: Deliver Us from Evil. Para mim este é o documentário a ver sobre abuso sexual a menores dentro da Igreja católica (nos EUA). É desesperante ouvir os relatos dos sobreviventes sobre os crimes e a reflexão sobre o impacto que os abusos tiveram na forma como vivem (ou não) a sua espiritualidade. Porque há um lado profundamente perverso na questão dos abusos serem cometidos por figuras que representam a sua fé, inclusive no uso dos próprios ensinamentos como justificação para os actos abusivos e para controlar as vítimas.
Em Portugal deram-se os primeiros passos na denúncia de tais crimes, muito recentemente e sem os números verificados noutros países (ainda). Não podemos esquecer a ligação entre a Igreja católica e o Estado Novo, o que acrescenta uma camada de dificuldade no escrutínio. Se olharmos para Espanha, que viveu uma realidade política muito semelhante à nossa, parece-me não só ingénuo como até desonesto as declarações dos representantes portugueses de que em Portugal os casos são mínimos, como se fossemos um oásis na tempestade. O regime repressivo, de baixa escolaridade, em que não se educava nem falava sobre sexualidade, dá-nos uma mistura perfeita para que as vítimas não procurassem ajuda, tão pouco reconhecessem o abuso e o denunciassem.
Não precisamos de mil casos nas igrejas portuguesas, nos escuteiros ou associações religiosas. Basta um caso. Um caso já é suficientemente grave. É preciso tempo e dar ferramentas à sociedade, através de disciplinas como a de educação sexual, para que se preparem as crianças e jovens a reconhecer comportamentos incorrectos e abusivos e, acima de tudo, a denuncia-los. Curiosamente há uma tendência de malta religiosa ser contra este tipo de educação de prevenção. Não é suspeito? Que temem?
É óptimo o trabalho do jornalista João Francisco Gomes.
Deixo aqui o relatório final Dar Voz ao Silêncio da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, de Fevereiro de 2023.