O Vinho da Solidão de Irène Némirovsky
A minha última experiência com Irène Némirovsky não foi propriamente memorável. Não desgostando, porque é impossível deixar de apreciar, ocorreu-me constantemente que estava a ler ecos de outras obras suas. Os temas presentes são repetitivos, reforçados pela componente auto-biográfica: jogos e conflitos, personagens realistas fruto de uma sociedade vazia de princípios e iludida pelo capital, alienação parental e famílias desestruturadas. Tal como em O Baile ou Moscas de Outono, a escritora narra a fuga da família Karol do Império Russo para a França e encontramos-nos novamente perante o mundo judaico, com a figura paterna ligada aos negócios e fonte de riqueza, contrastando com a figura materna cuja maior preocupação é o culto ao corpo e jogo de sedução, ambos completamente desconectados da filha Helena, a nossa narradora, que acompanhamos ainda criança e seguimos até à fase adulta.
A forma como Irène explora o elo materno, ou a falta dele, é realmente brilhante. Acho-a comparável a Maria Archer, seja porque ambas introduzem nas suas obras muito daquilo que foram as suas vivências e experiências, ou pela crítica à burguesia e à falsa moralidade, ambientes em que se moviam na mesma época (ainda que em países e culturas diferentes). Em O Vinho da Solidão gostei particularmente da reflexão sobre a influência e imitação, na base do ódio, alimentando um ciclo doentio de comportamentos e acções. Hélène odeia tanto a mãe que acabará consumida pelo desejo de vingança, transformando-se, em certos aspectos, na pessoa que mais despreza e da qual se procura distanciar e superar.
Não deixa de ser curioso reflectir sobre a obra e a vida de Irène Némirovsky. Silenciada pela comunidade intelectual judaica e fortemente criticada pelos sionistas após a sua morte, associou-se a jornais de extrema-direita e ultra-nacionalista franceses, que a aceitavam apesar da sua herança judaica (exactamente pela forte crítica e caracterização do judeu rico); estas amizades não foram suficientes para se salvar de Auschitwz, onde acabou por perder a vida, vitima da propaganda anti-judaica que o seu núcleo de amizades ajudava a difundir. Há aqui um certo paralelismo, não há? Hoje em dia vemos os sionistas a desfilar lado a lado com neo-nazis, a estabelecer parcerias com partidos de extrema-direita. O estado que condenou as suas obras é o mesmo que aplica com sucesso aquela limpeza étnica que vitimou Irène (e tantos outros).
São assim os dias que correm. O que pensaria Irène sobre isto se estivesse viva? Melhor, o que escreveria?