Desconfio que nem sempre programo com eficácia as minhas leituras. Ultimamente tem sido recorrente ler livros que são semelhantes, seja nos temas abordados, quanto no estilo da escrita. Acabo por sentir que estou a perpetuar a mesma leitura em diferentes livros e escritores. Na realidade nem se trata de "programar", já que me limito a ler o que me apetece, sejam livros meus ou que requisito na biblioteca. Se em casa estou reduzida aos que compro, já na biblioteca requisito muitos, quase sempre no limite máximo legal, simplesmente porque vejo que lá estão vários que quero mesmo muito ler e claro, tenho de os ler todos com o máximo de brevidade.
Os Rostos foi lido no seguimento de Quem Sabe e ainda que a história seja claramente diferente soou-me com grande proximidade, a atmosfera em torno da saúde mental das narradoras, a linha ténue entre loucura e sanidade e a forma como o núcleo familiar se mistura nas suas existências. Confesso que gostei mais de Tove Ditlevsen. Não foi uma leitura espectacular, iniciei entusiasmada e interessada na história, senti um quebra de intensidade durante a estadia da personagem na ala psiquiátrica (ali pelo meio do livro) e começava já a aborrecer-me. Não esperava muito do desenrolar da história mas o final convenceu-me, adorei o toque misterioso com que Tove concluiu a história. Fechei o livro com aquele sorriso meio tonto do género "ah, caraças, apanhaste-me!". Pretendo ler outros livros da autora.
Mais um livro requisitado na biblioteca e que se encontrava na minha lista de futuras compras.
Quem Sabe de Pauline Delabroy-Allard foi uma leitura agridoce, daquelas que me divide e sobre a qual tenho muita dificuldade em decidir se gostei ou não. Primeiro, aborrece-me profundamente encontrar comparações a outros escritores nas capas, contracapas, avaliações ou comentários no livro. Induz desde logo a um elevar ou diminuir de expectativas que é, a meu ver, desnecessário. Eu não queria ter a sombra da Duras colada a esta história, por mais que encontre espaço para ali vislumbrar semelhanças. Preferia ter chegado a tal conclusão sozinha. Segundo, não sou a maior admiradora deste estilo, um fluxo de consciência que quase não permite que exista história. Foi assim que me senti. Mais de metade dos pensamentos de Pauline não acrescentam grande coisa. Depende do que o leitor entender, nas referências e pontes que conseguir estabelecer. Eu não quero ter esse trabalho todo por uma história que me deixou de interessar antes do meio do livro. Gostava que se explorasse mais. Tudo. A escritora lança umas coisas para o ar, aguça a nossa curiosidade e não desenvolve. Eu sei que é ficção, sei que na literatura tudo é possível, mas dei por mim (demasiadas vezes) a pensar "alguém, alguma vez, teria feito isto, desta forma, por estes motivos?". Em resumo: não tenho paciência para estes livros. Controlei a vontade de abandonar e ainda bem, pois a última parte foi francamente a melhor. O envolvimento de Pauline com a casa, a escrita, o isolamento e a forma como a realidade se misturou com a ficção da leitura que Pauline abraçou na recta final, foi muito bem escrito, bonito e frenético.
Em Agosto fui visitar o Museu Nacional Resistência e Liberdade, que é como quem diz a Prisão de Peniche. Era domingo, a entrada gratuita para residentes nacionais, estava bastante pessoal, incluindo famílias com crianças (era o nosso caso) e turistas. É um Museu de visita obrigatória, seja para quem é consciente da história do país ou para os que fecham os olhos à realidade passada - afinal é mais aconchegante acreditar que os outros são uns exagerados do que assumir que, vivendo aquela época, provavelmente estariam no lugar dos opressores e nunca nos pés dos oprimidos. Como já aqui escrevi antes, não há espaço para confusões, nem complexidades. Ou se é antifascista ou se é fascista. Ou se defende a democracia ou se apregoa a ditadura. Não há meio termo, nem lugar para dúvidas. Quem tem o coração no sítio certo dificilmente percorre aquele espaço sem sentir o peso e a revolta pelos que lá passaram. Se lagrimei ao entrar n'O Segredo? Óbvio. Limpei as lágrimas discretamente para a minha criança não se aperceber e segui com a visita.
Já estávamos de saída e, claro, parei para "dar só uma vista de olhos" na oferta livreira do Museu. Comprei alguns livros, um deles este Gente Comum de Aurora Rodrigues. Li em Dezembro. Não é o primeiro (nem o último) livro que leio sobre o actuação da PIDE para com os presos políticos e as torturas que levavam a cabo para os quebrarem e obterem informações. Felizmente existe muito material literário escrito pelos próprios resistentes, além do trabalho de recolha de memórias feito por historiadores. Não foi, por isso, surpreendente ler o relato pormenorizado (dentro do possível) das prisões de Aurora, dos interrogatórios e das torturas. Surpreendente foi sim, sem qualquer dúvida, ganhar consciência do quanto uma mulher consegue aguentar, resistir, pela defesa de um conjunto de ideias e valores. Porra, que mulher admirável! Após o assassinato do seu amigo Ribeiro dos Santos, estudante e militante do MRPP, junta-se à resistência e ao MRPP. Leva uma vida dupla, entre ser estudante, espalhar panfletos e pintar murais, até ser presa pela primeira vez a 03 de Maio de 1973 na prisão de Caxias, sendo libertada após três meses. Sofreu todas as torturas habituais aos resistentes antifascistas: agressões físicas, psicológicas, tortura do sono, tortura do afogamento, espancamentos, privação de visitas. Nunca foi formalmente acusada, nem julgada. Sabe-se que foi sinalizada durante o funeral de Ribeiro dos Santos, onde estavam vários agentes da PIDE infiltrados. Sabe-se que foi perseguida e que usaram os meios disponíveis para a capturar. Para o regime uma estudante de 21 anos era uma ameaça e tinha de ser silenciada. Volta a ser presa já depois do 25 de Abril, no ataque à sede do MRPP pelo COPCON, juntamente com outros militantes e os seus familiares. Efectivamente estes foram tempos de uma riqueza partidária fascinante e bastante confusa - MRPP, UDP e PCP andavam às turras, envolvidos em alianças com outros partidos, atacavam-se na rua, em manifestações...Todo um potencial de união perdido à custa de guerras e guerrinhas.
Aurora Rodrigues formou-se em Direito e é magistrada. Tem actualmente 72 anos. Uma mulher que todos deveríamos conhecer.
Trabalho do Público sobre as antifascistas portuguesas aqui com o relato de Aurora Rodrigues.
Estou orfã de séries. Não sei o que ver, sinto que não há nada novo que me entusiasme, nenhuma grande série por descobrir. Acabei From da HBO e estou a gostar, tenho receio que caso não seja concluída na próxima temporada se perca no meio de tantas historiazinhas paralelas e aborrecidas que interessam a um total de zero pessoas. Tive a ideia de começar a ver Gomorra. Algures em 2009 vi o filme Gomorra que não me deixou boas recordações mas sabendo que tanto o filme quanto a série são baseadas num livro, o que abre sempre margem para diferentes abordagens e adaptações, pensei "bem, já que o filme não foi grande coisa, talvez a série compense".
Terminei a primeira temporada e estou assim numa versão senhora velhinha em frente à TV a papar a sua novela da tarde, pico de satisfação e lazer. Gomorra é a minha novela da noite. Como o livro que estou a ler não anda nem desanda, é disto que me ocupo antes de dormir. Adorei a primeira temporada e estou super curiosa para ver o que vem aí. Comecei a adorar a personagem Ciro e agora está a irritar-me, cumprindo o seu objectivo. Passei de odiar a simpatizar com Genny. No fundo são todos maus, criminosos horríveis, mas por quem torcemos para que se dêem bem na vida. Sou um coração mole até com a bandidagem.
Nunca fui a Itália e acho uma piada à semelhança arquitéctonica entre os prédios dos bairros sociais que aparecem na série e o bairro onde nasci e fui criada. De classe baixa em classe baixa, de Chelas a Nápoles, juntos na pobreza e degradação social. É o capitalismo a funcionar, parabéns Europa.
Ps: aquela comparação a Breaking Bad é absolutamente ridícula.
Trouxe da biblioteca os livros De Bestas e Aves de Pilar Adón, A Voz das Mulheres de Miriam Toews e Mrs. March de Virginia Feito. Eram três livros que tinha há algum tempo em vista para comprar e fiquei bastante entusiasmada quando os encontrei na biblioteca. Confesso que depois da leitura dos dois primeiros já estava resignada e agradecida por não ter gasto dinheiro com nenhum deles. Foram três leituras em jeito de sobe-escada. Uma péssima, uma mediana e no final, apanhando-me desprevenida e já sem expectativas, eis que Mrs. March me agarra e fascina, tornando-se um dos últimos favoritos de 2024.
Mrs. March é um livro curioso. Cativou-me logo nas primeiras páginas e não fui capaz de o pousar. Seguimos a vida de uma mulher de classe alta, casada com um escritor e mãe de um menino (não me recordo ao certo da idade, mas ali entre os 8 e os 11 anos). Inicialmente pensei que a história giraria em torno da relação entre o casal, numa espécie de episódio psicótico de Mrs. March após perceber que o marido se inspirou nela para criar a personagem principal do seu último livro, uma vulgar prostituta, que se tornou um sucesso de vendas. Mas a escritora parte deste princípio para nos fazer entrar na mente perturbada de Mrs. March - bastante perturbada, exactamente como eu gosto - e às tantas a questão da inspiração literária e da vergonha social que atinge Mrs. March extravasa para outros patamares de delírio.
A teia de pensamentos que vai surgindo em reacção à realidade envolvente demonstra-nos uma mulher profundamente humana, nas suas falhas e defeitos. A pressão social para corresponder ao padrão da elite e representar o papel já tantas vezes levado a palco, desde a infância onde a família deposita todas as expectativas sobre o que somos e como seremos em adultos, até às pressões nos relacionamentos, nas amizades, no trabalho, e por aí vai. A personagem foi permanentemente limitada e moldada, desenvolvendo respostas e mecanismos de defesa que só a própria conhece. Quem é verdadeiramente Mrs. March? E do que é capaz?
Adorei cada capítulo, cada acrescento na história, nas dúvidas que me foi plantando conforme avançava na leitura. A introdução da possibilidade do crime é deliciosa. Reconheço, no entanto, a crítica de alguns leitores ao apontarem que a autora mistura vários tópicos, correndo o risco de perder o foco. Para mim funcionou lindamente. É intrigante, tem graça, lê-se num ápice.
A capa de Mrs. March é um pesadelo para mim. Demasiadas vezes olhei para o livro de forma a certificar-me que não estava de facto uma barata a passear-se pela saia azul. Foi o mais próximo que tive de sofrer um ataque cardíaco provocado por um livro. Nem os nervos e irritações que alguns me infligem chegou a este ponto.
Entrevista da escritora para o Comunidade de Cultura e Arteaqui.
Quando sei que um filme é baseado num livro tendo a priorizar a leitura em vez do cinema. O problema é, pois claro, quando não o sei. Ouço falar bem dele, a história parece-me interessante e vejo. Só posteriormente, ao pesquisar qualquer coisa, é que me apercebo que existe livro. O mal está feito. Dificilmente a leitura me vai saber tão bem quando já conheço a história. Foi o caso com A Voz das Mulheres da escritora canadiana Miriam Toews.
Não se tratando de uma má leitura, perdeu o encanto por já conhecer o desenrolar da história e o seu desfecho. A força da narrativa está no desenvolvimento do pensamento crítico do grupo perante a realidade que o atormenta e a exploração desta evolução no filme foi muito mais intensa e interessante, em comparação ao que senti com a leitura. A quantidade de personagens é confusa e as suas particularidades individuais perdem-se no formato da narração. Estes apontamentos menos bons não invalidam a qualidade da historia que nos é apresentada. A reflexão proposta sobre as seitas religiosas, principalmente na anulação do individuo através da manipulação que se propaga de geração em geração, ampliando a repressão que se reflecte nos mais pequenos actos diários. Um grupo de homens, de diversas idades, droga e viola mulheres e crianças dentro da colónia, durante anos e com o conhecimento de outros homens. As mulheres organizam uma assmbleia onde discutem o seu futuro. Ficar, fugir ou lutar. Alterar o funcionamento da comunidade, aceitar os abusadores, resignar-se, expulsar os homens, matá-los, abandonar tudo o que sempre conheceram e iniciar uma nova vida. É uma discussão rica em possibilidades e Toews trabalha muito bem os conflitos que advêm de cada decisão.
Em resumo: leitura mediana, ideia interessante, narração q.b. aborrecida, execução mais bem conseguida no filme. E por a realizadora ser a magnifica Sarah Polley, aconselho fortemente que vejam o filme A Minha Vida Sem Mim.
Nunca tinha lido Kazuo Ishiguro. Dos seus trabalhos apenas conhecia a adaptação de Nunca Me Deixes. Foi sugestão do clube de leitura que frequento ler Um Artista do Mundo Transitório (ou Flutuante), o livro que me calhou era semelhante a este, portanto bem velhinho. Este ano a temática do clube de leitores não foi propriamente apelativa (para o meu gosto), sendo esta leitura do ano a única que realmente me entusiasmou.
Seguimos Ono, um velho artista, pintor amplamente admirado e reconhecido, que quando se apresenta a possibilidade da sua filha mais nova vir a ser pedida em casamento, inicia um processo de auto-análise e reflexão sobre o passado e as suas acções em nome do nacionalismo japonês durante a Segunda Guerra Mundial. Eu nada sabia sobre este livro, ou sobre o seu escritor, para ser sincera sempre me tinha passado ao lado, pelo que iniciei a leitura com baixíssimas expectativas. Há melhor que ser positivamente surpreendida e, semanas após o final da leitura e entre outros livros entretanto lidos, ainda dar por mim a reflectir na história de Ono? Não, não há. É deste tipo de coisas que se fazem os grandes livros. Para mim, claro. Outros terão definições diferentes do que é que torna uma leitura uma experiência memorável.
Então vamos mergulhando na sociedade japonesa, na forma como a ocupação (no pós-guerra) e a influência americana se misturaram no ideal japonês, nos traumas de guerra que marcaram gerações, em como os ideais nos moldam, permanente ou momentaneamente, nas acções que levamos a cabo em prol de valores superiores e como lidamos (ou não) com as consequências das nossas escolhas e posições políticas. É muito bonito a forma como, tal como numa pintura, Kazuo nos oferece diferentes tonalidades, contrastes e perspectivas. Compreendi que a leitura que eu fiz não foi exactamente a mesma que outros leitores do clube fizeram - alguns focaram-se mais na relação avô-neto-família, outros na sociedade japonesa (tão distante da nossa), outros na arte japonesa (como se desenvolvia a relação entre os pintores e as obras, os mestres, etc). Eu foquei-me por completo na questão política, sempre com a curiosidade de perceber o que temia Ono ter feito no passado que colocasse em causa o bom casamento da filha. Depois, a forma como Ono lida com a culpa (a negação, a desvalorização dos seus actos e decisões), o peso do passado e como sempre se reflectirá no futuro. É delicioso o jogo que Kazuo estabelece com o leitor, ao colocar perante nós um idoso, aparentemente sério, respeitoso, inteligente, que nos manipula até ao final do livro, colocando a sua velhice e falta de memória sobre o passado em perspectiva, diminuindo o seu papel nas situações mais críticas. Ele afirma sem afirmar, conta sem contar. E aos bocadinhos, exigindo bastante atenção, vamos percebendo a complexidade da personagem de Ono, que nada mais é que a representação de um certo Japão, que existiu numa época muito particular mas que se perpétua na história da humanidade. Somos mesmos uns seres estranhos.
A minha vontade de pensar neste livro para aqui explicar o que achei da leitura é nula, tal como qualquer esforço que teria de fazer para justificar o quão mau foi lê-lo. Dou graças aos deuses, fadas e unicórnios, não ter gasto qualquer dinheiro na sua compra e agradeço até ao final dos meus dias neste planeta a existência de bibliotecas.
Assim, apenas afirmo que há uma diferença entre criar desconforto no leitor e irritar de tal modo quem lê ao ponto de transformar a leitura em algo horrível. Ler é demasiado importante para mim e custa-me lidar com escritores que fazem esta maldade, que me contaminam com o pior veneno existente: odiar ler. E foi nisto que eu me tornei enquanto tentava ler este livro. Numa pessoa que naquelas semanas (o tempo que perdi!) odiou ler. Ficava que nem uma dependente de substâncias ilegais, olhando para as minhas estantes e ansiando pegar noutro livro para me purgar da intoxicação literária induzida por De Bestas e Aves.
A pior leitura de 2024.
Aqui fica uma crítica que eu gostava de ter lido antes de me ter aventurado por este caminho.
Depois de ser mãe fui-me cruzando com algumas referências ao livro O Quinto Filho em textos que lia e que continham reflexões sobre maternidade e pós-parto. Em Novembro confirmei que existia na biblioteca que frequento e requisitei.
Foi um dos melhores livros que li em 2024.
Fazendo uma leitura mais literal ou abstracta sobre Ben (o quinto filho), o que ele é e o que representa, percebemos que este é um óptimo exemplo de como um livro pode conter muitos livros diferentes dentro, suscitando várias interpretações e outras tantas reflexões. Esta característica nem sempre me agrada, mas neste caso contribuiu positivamente. A exposição da maternidade, desde o lado mais agradável até ao detestável, como a depressão na gravidez e no pós-parto, a dificuldade no elo entre mãe e recém-nascido, a procura na ciência de respostas e soluções quando elas são inexistentes ou incorrectas, até à ideia de que os bebés/crianças são como que produtos numa linha de produção, todos idênticos e sem personalidade, enfim, é tanta a exposição concreta e realista do universo da maternidade, que só quando Ben cresce e começam a ocorrer algumas situações é que me inteirei que estava a ler ficção cientifica. Como já tinha procurando informações sobre a autora, sabia que se identificava como uma escritora de ficção cientifica antes de qualquer outro género tendo escrito várias obras que se enquadram nesse formato, portanto não foi uma surpresa e aceitei de bom grado este caminho que a história começou a percorrer e que se manteve cada vez mais vincado até ao final.
A aceitação de diferentes existências é, para mim, o ponto chave deste livro. Começando com as críticas que Harriet e David sofrem por decidirem ter uma grande família, parecendo que são adultos incapazes de pesar os prós e contras de tal decisão - o que se vem a comprovar ao dependerem do apoio financeiro do pai de David mas também de auxilio no dia-a-dia da mãe de Harriet, que rapidamente se transforma numa governanta dividida entre duas casas - passando pelo desconforto que Harriet sente em torno da sobrinha com deficiência até ao expoente máximo que é a chegada de Ben, atingindo e modificando todo este mundo pequeno-burguês. Com a passagem dos anos as diferenças de Ben vão-se acentuando, desde o tamanho, às incapacidades do foro cognitivo e emocional, passando por atitudes violentas e grande agressividade. Não sabemos o que Ben é, nem sei se é suposto encaixarmos a personagem em alguma definição clínica, nem ainda se alguma parte da sua personalidade não foi fomentada por esta inadaptação e rejeição desde o nascimento.
Ben é diferente e não corresponde às expectativas (familiares e sociais), ninguém o aceita como ele é, com excepção do grupo de jovens delinquentes alienados com quem cria uma estranha amizade.
Há algo de bonito na determinação de Harriet em, como mãe, fazer todos os esforços, por mais estranhos e loucos que sejam, para manter Ben sob a sua protecção e vigilância, com todas as consequências que tal decisão acarreta, posicionando-se contra David e a sua solução de abandono.
Uma escrita limpa, sem adornos ou distracções, exactamente como eu gosto.
Aqui um texto interessante sobre pessoas com deficiência e a necessidade de lhes garantir uma vida digna.
Uma história de ódios, vinganças e luta de classes. Tinha tudo para ser uma leitura satisfatória e foi exactamente assim que correu a minha experiência com Caruncho de Layla Martínez.
Vou poupar-me a papaguear os (legítimos) elogios que tantos já lhe fizeram. Subscrevo tudo.
Iniciamos a leitura a saber que aconteceu um crime. Depois compreendemos que na realidade aconteceram vários crimes, ao longo de gerações, através de condutas violentas e repressivas com foco nas personagens femininas. A casa como figura central de toda a trama, local de nascimento e morte, acolhimento e repressão, prisão e libertação. É realmente fantástica a tensão da casa da família e como cumpre muito bem o seu papel clássico dentro do género terror.
Gostei da forma como a história se desenvolve, do submundo fantasmagórico alinhado com a ditadura e a guerra civil. As crenças em bruxaria e mau-olhado misturadas com o catolicismo, tão semelhantes entre os nosso países, aproximam-nos das personagens e facilmente nos conseguimos introduzir na realidade que nos é contada.
Foi uma boa leitura e deixo aqui uma interessante entrevista à escritora feita pela Shifter.