Porque não só de desilusões cinematográficas vive esta pessoa, eis alguns bons filmes que vi recentemente (entenda-se últimos meses) e que guardo na memória.
Oddity é um filme de terror e mistério muito bem conseguido. Tinha algumas expectativas por ter lido opiniões muito positivas, e estava com receio que fosse mais um filme meia-boca, mas desde o começo que me senti hiper focada em perceber todos os pormenores possíveis para desvendar o percurso que a história ia seguir. A cena mística por norma não me entusiasma mas gostei da forma como encaixou aqui.
Desde que Close estreou que ando com ele debaixo d'olho. Antecipando um filme mais demorado e com pouca acção, tinha de estar no modo certo para o conseguir apreciar. Numa aparente lentidão, vamos-nos focando na fotografia e nos pequenos pormenores e silencios que tanto dizem. É triste e belo na medida certa.
Não é preciso muito para me convencerem a ver um filme de Ken Loach. Se são criações suas com toda a certeza será uma boa jornada. Tanto The Old Oak quanto Sorry We Missed You não são filmes para nos mantermos na nossa bolha de conforto e alienação e é exactamente por isso que têm valor. É incrivel verificar a importação de ideias e linhas de pensamento e como as pessoas-tipo que alinham em certos discursos são as mesmas em todos os países. Em The Old Oak a acção decorre numa vilazinha inglesa mas podia ser num bairro em Portugal, a ignorância não tem fronteiras. Felizmente a bondade e empatia também não.
Sofri mais com Sorry We Missed You. É como um valente soco no estomâgo que nos desperta para a exploração laboral em torno de uma suposta independência - ser-se o próprio patrão - que nos vendem como se o empreendedorismo fosse um universo à parte do sistema capitalista e por isso menos danosa para o ser humano.
Em Red Rooms não há espaço para tédio. A atmosfera tensa e macabra nunca nos abandona, principalmente pela dúvida quase permanente que se infiltra no espectador sobre a figura de Kelly-Anne: quem é ela? Qual o motivo para seguir o julgamento? Está ela relacionada com os crimes cometidos? Envolvida no mundo obscuro da darkweb? O fascínio que o ser humano sente perante o universo criminoso (seja através da literatura policial, dos podcasts de true crime, filmes de terror, etc) faz parte da nossa natureza. Sentir a adrenalina do perigo sem estarmos efectivamente em perigo. Kelly-Anne ultrapassa o interesse saudável e demonstra-nos como um obsessão acaba por colocar em risco a sua própria existência.
Assumo que talvez não tenha capacidade para compreender Felizes Anos de Castigo. Entre tantas apreciações positivas com certeza será falha minha, pois que eu não encontro naquelas páginas nada do que os restantes leitores absorveram nem a história que a sinopse me indica ali estar.
Julguei que fosse encontrar algo semelhante, mesmo que levemente, a Teresa e Isabel de Violette Leduc.* Afinal a história retrata exactamente uma relação queer/lésbica entre duas jovens que frequentam um colégio interno. O que encontrei foi tão vago, tão pobrezinho, que me arrastei na leitura durante semanas, aguardando uma espécie de revelação qualquer que me fizesse compreender seja lá o que for que há para compreender neste livro.
Portanto há uma criança, num colégio interno, que estabelece uma ligação (aparentemente diferente) com outra criança. Não sei o que há de queer nesta relação, parece-me quase uma simples amizade em que uma das partes é ligeiramente obcecada pela outra, no sentido da observação e idolatração, tão típico das idades retratadas. No entanto, por pouco ou nada acontecer no decorrer da história, haverá margem para as extrapolações que o leitor quiser e bem entender.
Apenas no final, quando as personagens já são adultas, me interessei um pouco pelo seu destino. Não o suficiente para salvar a leitura. O tempo que perdi neste livro e que nunca recuperarei...
* Violette Leduc foi uma das melhores descobertas da minha vida. Em 2013 vi o filme Violette e fiquei muito curiosa sobre a obra da escritora. Infelizmente os seus livros publicados em Portugal foram censurados pelo Estado Novo e a única edição relativamente recente que ainda se encontrava à venda era o Teresa e Isabel da Relógio D'Água, entretanto esgotado, que na realidade corresponde a uma parte de outro livro seu. Nesta obra encontramos um relato autobiográfico dos anos de juventude de Violette passados num colégio interno, da descoberta da sexualidade e dos relacionamentos lésbicos entre as alunas. A escrita é simplesmente maravilhosa, lindíssima e intensa. Torna-se impossível ignorar que estamos perante textos que reflectem as existências e vivências da própria escritora, o que aumenta o fascínio em torno das suas criações. Tenho também os livros "A Bastarda" e "A Caça Ao Amor" (ainda não li), comprados em alfarrabistas. Aguardo ansiosamente que alguma editora pegue na sua obra completa e a publique. Já é mais que tempo.
Li A Dama Oculta e a tradução é assustadoramente má. Senti que estava a ler uma mistura entre português e português-brasileiro. Algumas decisões linguísticas não me fizeram muito sentido pelo que não fiquei particularmente interessada em pegar num dos outros dois tão depressa, com receio que a tradução esteja ao mesmo (des)nível. Sei que são edições baratinhas mas não me parece que justifique. Enfim, não foi tão mau ao ponto de prejudicar gravemente a leitura. Nem se trata de uma língua ser superior a outra, não tenho nada contra edições em português-brasileiro desde que eu as escolha sabendo de tal característica. Cresci com as novelas da Globo e passei o livro todo a imaginar a Iris como uma personagem da novela da noite.
Ethel Lina White foi uma senhora inglesa que viveu entre 1876 e 1944, numa família de classe média-alta, tendo começado a escrever cedo e tornando-se um dos principais nomes da literatura policial/suspense da época. Em Portugal só se encontra este livro publicado, o que é uma pena.
Entramos no mundo de Iris Carr, uma jovem mulher, rica e órfã, que vive livremente, sem amarras, em permanente ócio com os seus amigos, sem casa própria, em viagens nos lugares mais exóticos e luxuosos da Europa. Assim a encontramos, meio aborrecida com os amigos, decidida a não os acompanhar e fazer a viagem de regresso a Londres sozinha. Nesta fase há a sensação de que os bons momentos estão prestes a desaparecer, já que todos os hospedes se estão a preparar para abandonar o hotel e regressar a Inglaterra de comboio. A premonição de que algo obscuro e estranho se aproxima, no decorrer de Iris se encontrar sozinha e por isso mesmo exposta a perigos, ela que está sempre rodeada de pessoas, é aqui explorado de forma magistral. Uma afronta social, a dama viajar sem acompanhante, extremamente ousado para a época e representativo da independência de Iris. O grosso da acção decorre no percurso de comboio, onde Iris se cruza com várias personagens, sendo uma delas uma velha senhora, tipo governanta, que segue para Inglaterra após trabalhar na casa de um grande senhor de um país de Leste. Acontece que Iris adormece e quando acorda não há sinal de tal senhora, tão pouco os restantes passageiros que partilham a cabine se recordam dela estar presente. É este o mistério. Quem é a senhora? E onde é que ela está?
Iris mergulha num estado psicótico tentando responder a estas questões com a ajuda (ou falta dela) de dois cavalheiros ligados à filosofia. Um desaparecimento num comboio que faz a ligação entre vários países ao longo de dias, praticamente sem paragens, de onde é impossível sair, ainda para mais sem que outras pessoas o notem.
Por ser mulher, jovem, solteira e viajar sozinha, Iris é vista como louca, perturbada, histérica. Completamente descredibilizada. Ameaças de prisão, hospitalização forçada num hospício a meio do caminho e uso de medicação para se manter calma. Ethel White caracteriza assim não só a figura feminina mas também como a sociedade a vê e julga, em 1936. A atmosfera opressiva em torno da personagem de Iris é não só realista como ainda plausível de acontecer nos dias de hoje.
Uma história bastante interessante e bem escrita, intensa e claustrofóbica, feminista, que deixa o leitor com a dúvida permanente de que partes são reais ou alucinação. Vamos lendo página após página envolvidos na confusão e dúvida de Iris, ansiando para que ela consiga escapar ilesa. Não é qualquer escritor que consegue trabalhar cenários fechados com mestria e Ethel White, felizmente, oferece-nos uma obra verdadeiramente inquietante.
Não vi a adaptação que Hitchcock fez em 1938 e que se tornou um clássico do cinema, além de ser amplamente reconhecido como um dos seus melhores trabalhos, portanto desconheço se o filme é fiel à obra ao ponto de não mascarar algumas alinhas que para mim são fulcrais para o entendimento da personagem de Iris Carr. Talvez seja uma boa escolha para ver agora durante a época natalícia.
Então não é que Mrs. Caliban se transformou em favorito, assim, como quem não quer a coisa? Talvez o surrealismo literário não seja, afinal, tão problemático quanto eu julguei. Acho que o que não aprecio não é tanto o irrealismo ou a fantasia, mas sim a escrita que torna impossível ao leitor distinguir o que é factual (dentro da história) e o que é ilusão, sonho, imaginação. Confusa, eu? Sim. Portanto, ler este tipo de obras pode ou não ser uma boa escolha e neste caso correu muy bem.
Publicado em 1982, retrata a vida de uma mulher, doméstica e deprimida, que reencontra o sentido da vida ao acolher um ser híbrido (tipo homem-aquático-lagarto), após este escapar de uma existência de torturas e experiências laboratoriais. Relações infelizes, traições, amargura, injustiça, discriminação, intolerância, aprendizagem, aceitação, são alguns conceitos e ideias que estão presentes nesta história e que a tornam completamente relevante e intemporal. Não é sem razão que esta obra é considerada uma obra-prima dentro do género.
Até certo momento questionei se Dorothy estaria a alucinar, uma extensão do trauma pelo luto recente, e se Larry efectivamente existiria ou seria apenas um escape da sua mente perturbada pela infelicidade extrema. Esta dúvida fez-me ter ainda mais interesse em Dorothy, na evolução da sua personagem e do seu psicológico. Apenas quando Larry interage com outras personagens abandonei a ideia da loucura, sem perder o foco no desenrolar da relação entre os dois. A intensidade vai aumentando conforme vamos avançando na leitura, o tom de tragédia que se avizinha e a atmosfera quase claustrofóbica que envolve Larry - em liberdade sem ser livre - e Dorothy - condicionada e alienada - contribuem para virar página após página, cada vez com mais rapidez, para chegar à conclusão desta aventura bonita e profundamente triste.
Uma novela bastante cinematográfica. Lembrei-me muitas vezes de Eduardo Mãos de Tesoura. As acções rápidas, os ambientes repetitivos e sem grandes descrições, poucas personagens e bem caracterizadas. A leitura desenrolou-se dentro da minha cabeça como se estivesse a ver um filme e estava bastante entusiasmada, julgando que de certeza existiria já alguma adaptação. Acontece que não e nem sequer se atrevam a sugerir que este é parecido, dá-me já um ataque (está na minha lista dos piores filmes de sempre). Imaginei Larry igual ao Monstro da Lagoa Negra. Não há ser meio-lagarto-meio-peixe mais icónico que ele:
Continuo a ficar maravilhada com esta capacidade, que alguns escritores têm, de criar algo complexo numa dimensão tão curta (são 128 páginas). Um livro pequenino mas grandioso que, em aparente simplicidade, se solidifica e cria uma trama astuta sobre relações e comportamentos. Rachel Ingalls escreveu várias novelas que não se encontram traduzidas e publicadas em Portugal, sendo Mrs. Caliban a única excepção.
Episódio do programa As Palavras do Mundo da RTP sobre Mrs. Caliban e artigo porreiro aqui.
Assim ando eu, atrasadíssima em publicar neste espaço os meus achismos sobre as leituras que vou fazendo. Li este Os Rapazes de Nickel em Agosto e estamos em Dezembro. Era suposto escrever conforme fosse terminando cada livro, o que não sendo falta de vontade é só mesmo falta de tempo.
Foram várias as opiniões positivas que fui retendo sobre o escritor Colson Whitehead, pelo que quando tive possibilidade comprei o livro mencionado. Lê-se efectivamente com bastante facilidade pois a escrita é muito acessível. Conhecia outros casos de Instituições de cariz social que ao longo dos anos foram sendo encerradas, maioritariamente nos EUA, Canadá e Austrália. Infelizmente não choca ninguém que ao longo de decádas se tenha verificado que estes locais não só não reuniam condições para acolher jovens e crianças, como proliferavam os mais variados abusos, fosse por questões ideológicas, por ausência de fiscalização e profissionais adequados, demonstrando um completo abandono do Estado perante os que mais necessitavam de ajuda e protecção.
Encontrei uma entrevista do escritor em que este conta um episódio que aconteceu com o próprio quando era um jovem estudante e que toca, em certa medida, no que acontece também à personagem principal.
Não posso dizer que em alguma parte da história esta se tenha apresentado original ou inesperada, não sendo este aspecto negativo ou positivo, apenas me deixou a impressão que várias vezes se optou pelo caminho do facilitismo. Como já mencionei noutras ocasiões não sou particularmente adepta de personagens rasas e extremamente empáticas. É uma questão de gosto pessoal. Compreendo, ainda assim, as escolhas do autor. Foi o final que mais me agradou e que me agarrou ao universo retratado por Colson. É uma leitura que vale o tempo do leitor e que representa muito bem como uma simples escolha, numa questão de alguns minutos, pode mudar por completo uma vida quando se vive num país estruturalmente racista, como os Estado Unidos (aliás, há algum país ocidental ex-colonial que não o seja?).
Tentarei ler outros trabalhos do Sr. Colson Whitehead, ansiando que sejam um bocadinho mais elaborados que este.