Se por um lado gosto de pesquisar e planear leituras, ainda que frequentemente mude de ideias e acabe a ler outra coisa, também me encanta entrar na biblioteca e requisitar livros que desconheço por completo. Idem, livrarias - apesar de estar sempre limitada pelo factor monetário. Foi assim que optei por comprar Out - Uma Saída da escritora japonesa Natsuo Kirina, numa ida à Bertrand. Evitando ler a sinopse na totalidade para não ficar a saber demasiado sobre a história, a premissa de um grupo de mulheres envolvidas num homicídio despertou-me a curiosidade e foi por isso que o escolhi. Foi uma leitura satisfatória e tudo se deve à senhora Natsuo e às suas personagens desafiantes. É uma história estranha que nos deixa sempre numa posição de desconforto e descrédito, independentemente do narrador que estivermos a seguir, e os aspectos principais têm tudo para correr muito bem ou muito mal, dependendo da capacidade de quem o escreve. Eu consigo compreender quem o leu e não se deslumbrou. Também eu tive momentos em que senti os alicerces da história a estremecer e o receio de estar a investir o meu tempo numa leitura com demasiadas linhas e subtemas - característica que, em policiais/mistério, tende a irritar-me. A verdade é que me conquistou e as últimas 150 páginas foram devoradas à bruta, um bocadinho como a nossa anti-heroína Masako também se revela uma personagem marcada pela e para a brutalidade.
Escrito em 1997 e publicado pela primeira vez em Portugal em 2009 pela editora Livros d'Hoje (edição esgotada) e reeditado no ano passado pela ASA, é o livro da escritora mais vendido e aclamado pela crítica.
Iniciamos a história com um grupo de quatro mulheres que trabalham numa fábrica de embalamento de refeições pré-cozinhadas, no turno da noite, numa zona rodeada de indústrias e edifícios abandonados. Ou seja, não é bem o local de eleição para mulheres circularem. O nível de insegurança aumentou nos últimos meses quando várias trabalhadoras se queixaram de assédios e tentativas de rapto. Esta vai ser uma das linhas da história, além da acção principal: o homicídio do marido de Yayoi e a forma como esta é ajudada por três colegas de trabalho a escapar à justiça. Existem duas outras linhas: o mundo da agiotagem e o da máfia japonesa. Parece uma mistura completamente forçada não é? Uma salgalhada que tem tudo para dar errado, só que não só funciona como é espectacularmente bem executada. A construção das personagens é a cola neste jarro japonês partido. Não há uma personagem fraca ou descartavel. As histórias secundárias são bem encaixadas na narrativa principal e compreende-se que o objectivo não é encher páginas (sim, Stephen King estou a pensar em ti) mas fortalecer as individualidades de cada personagem. Há um sentido, uma estrutura que se vai construindo, onde as várias linhas se cruzam e interligaram de forma bem harmoniosa: Masako, uma mulher inteligente farta do desapego familiar; Kuniko, superficial e mal-amada; Yoshi, explorada no trabalho, explorada em casa; Yayoi, vitima de violência doméstica. Todas partilham do mesmo: alienação e cansaço extremo. Até que surge a possibilidade de uma existência diferente que ambas vão abraçar mesmo que para isso tenham de assumir o seu lado mais negro, da violência, à ganancia, inveja e maldade. Afastam-se do típico retrato feminino, mesmo dentro do policial, onde encontramos sempre personagens agridoces ou problemáticas, e foi por isto que gostei particularmente deste livro. Ser um calhamaço com mais de 500 páginas implica um certo compromisso que nem sempre estou disposta a assumir e com este livro valeu o risco.
O final revelou-se completamente ao lado do que eu esperava. A história entra numa espiral de violência gore, mais próximo do terror, jogando com a ideia de amor-ódio, obsessão doentia e complexidade de emoções que, para ser sincera, não sei se será muito consensual e que pode deixar alguns leitores confusos. Eu gosto de personagens difíceis e "fora da caixa", cujas atitudes não são compreensíveis ou justificáveis, e me deixam incomodada. Se preferem personagens boazinhas e empáticas este livro não é uma boa opção. Terminei em modo "caraças, o que é que acabei de ler?", entusiasmada e q.b. incrédula com o desfecho escolhido por Natsuo Kirino.
Lido em Agosto e ainda fresco em mim. Sem dúvida um bom prenúncio. É uma pena que não estejam publicados em português outros livros da autora que é considerada uma mestra deste estilo literário.
Parece que há esta adaptação aqui. A julgar pelos comentários não é muito porreira, pois deixa por aprofundar as várias camadas do livro. Talvez um dia destes lhe dê uma oportunidade.
Mais um livro comprado na FLL, mais uma leitura que me remete para as férias de Verão.
Infelizmente ficou aquém das expectativas. Não é que tenha sido uma leitura desagradável mas metade do livro consiste em explicar o contexto histórico, literário e académico sobre o que foi publicado até então sobre a actuação da PIDE e a forma como o cidadão comum vivenciou a ditadura, que na minha opinião é fácil de resumir e o autor parece dar voltas e voltas e voltas ao mesmo argumento e conclusão. A restante metade sabe a pouco, ou melhor, pareceu-me uma base de investigação muito reduzida para que se consiga chegar à conclusão que o autor impõe. Ou seja, o livro propõe analisar a ideia de que muitos portugueses não só concordavam com a existência da PIDE, como queriam trabalhar ou procuravam o seu auxilio para resolução de casos pessoais mascarados de "teor político dissidente". Isto não me parece novidade para ninguém. O facto da ditadura ter durado tantos anos já é representativo de como grande parte da população compactuou com a mesma, o que por si só não significa que concordasse com as suas políticas e medidas, pois convenhamos que era uma ditadura e não existia alternativa que não tivesse como consequência a prisão, tortura ou morte - e eram estas as consequências que os defensores da democracia sofriam.
O autor parte de dois pontos: 1. as obras publicadas sobre a actuação da PIDE são escritas por sobreviventes/vítimas antifascistas ligadas a partidos de esquerda, pelo que não correspondem ao todo da população; 2. Há provas de que algumas pessoas escreviam à PIDE para pedir emprego, resolver disputas familiares/pessoais, acusar falsamente outrem de ser anti-regime e procurar informação sobre familiares desaparecidos.
Ora não só são situações expectáveis, como semelhantes ao que se encontra noutros regimes autoritários, ainda que o autor também reforce que a PIDE não foi assim tão má quanto outras policias políticas (revirar os olhos ao pensar numa tabela de qualificação da repressão). Depois os exemplos analisados são poucos, com reduzida informação e sempre redigida em jeito de bajulação ao Director, demonstrando o que alguns chamarão respeito, eu diria que respeito conquistado através do medo não passa disso mesmo: medo.
Analisar um tema através de conteúdo escrito, neste caso de cartas, quando uma alta percentagem da população portuguesa não sabia ler nem escrever, parece-me arriscado e pouco representativo.
Resumidamente: não acrescentou nada que já não soubesse e não me parece que a investigação levada a cabo por Duncan Simpson tenha uma amostra suficientemente larga para que suporte qualquer tipo de conclusão. Ainda assim, foi interessante ler as cartas que sobreviveram à destruição de arquivo levada a cabo pelos agentes da PIDE no pós-revolução. Seria muito mais interessante entrevistar ex-PIDE's, pessoas ligadas ao regime, apoiantes, informadores, que dessem a cara e contassem a sua perspectiva. Por enquanto, os que ainda vivem, não se devem sentir confortaveis a assumir as suas simpatias passadas. No panorama geral do país talvez seja melhor continuarem assim, calados pela vergonha.
Os livros policiais baseados em acontecimentos reais vieram unir dois universos que me dão imensa satisfação: crimes reais e livros. Policiais são o meu livro-pipoca, é a opção para relaxar e ler rapidamente; foram os primeiros livros que li e desde pequena que colocar-me no lugar do detective, seguir pistas e saber porque raio alguém comete tal crime se apresenta como algo profundamente fascinante. Se quero estar entretida o que faço é ler um policial, ver um documentário ou ouvir um podcast de true crime. Estou entre a obsessão (saudável) e o deslumbramento. Não aprecio a romantização do crime e dos criminosos. É só super interessante perceber porque raio as pessoas de desviam do caminho normal e como é que as investigações são feitas até que sejam levadas à justiça, depois como funcionam os julgamentos e em última estância como é que se lida com os monstros que habitam este planeta.
A HBO lançou em 2020 a série I’ll Be Gone in the Dark baseada na investigação de Michelle McNamara, que eu já conhecia através de um podcast que ouvi sobre o assassino em série DeAngelo. Gostei muito do documentário e Michelle é a prova de que os "maluquinhos do true crime" podem sim ajudar a resolver casos. Passados quatro anos, mais ou menos, comprei o livro nas caixinhas da Relógio d'Água na FLL.
É-me impossível apontar um deles como superior. Na série existe a presença constante do esposo da Michelle (sujeito bastante conhecido em Hollywood) e a saúde mental da escritora é indissociável da investigação. A dor é mais palpável e há momentos em que a série se torna sobre a Michelle e é a sua história de vida que ganha relevo. No livro senti mais o instinto de caça. Todas as peças do puzzle, os passos dados às cegas, até chegarem a um culpado. Ambos os trabalhos se complementam. Funcionou bem comigo ter visto a série, conhecer o caso e posteriormente pegar no livro.
É um virar de página em "passo acelerado". Ultrapassa a simples narração de uma investigação criminal, é bonito apesar de descrever acontecimentos horríveis e é também uma forma de despedida, agradecimento e celebração da escritora pelas palavras daqueles que se trabalharam com ela e faziam parte do seu circulo de proximidade.
DeAngelo foi um dos piores violadores e assassinos em série dos EUA. Tinha um modus operandi peculiar e doentio. Após os ataques continuava a telefonar e ameaçar algumas das sobreviventes, retirava prazer em agredir jovens casais e quebrar psicologicamente a ideia do homem forte e protector da família (vou poupar-vos os pormenores, leiam o livro se quiserem). Durante 42 anos ninguém soube quem ele era. Foi através de uma ideia da Michelle que a polícia conseguiu chegar até ele: utilizar a base de dados de uma empresa de geneologia para cruzar ADN do suspeito deixado nas cenas dos crimes, encontrar algum familiar próximo e descobrirem a sua identidade - entretanto já se utilizou esta tecnica noutros casos e há todo um debate sobre protecção de dados envolvendo estas empresas, que também acrescenta uma reflexão interessante sobre privacidade, justiça e o papel do Estado.
Este caso é alucidativo do que o universo das ciências forenses nos têm vindo a ensinar: pessoas que sofreram abusos na infância, sem estrutura familiar, com figuras paternas/maternas autoritárias, que foram expostas a violência sexual enquanto crianças, têm muito mais probabilidade de se tornarem adultos violentos e perturbados. DeAngelo cumpriu todos os "requisitos" de um agressor em ascensão: assaltava casas e observava mulheres às escondidas, optou por profissões com alto risco de violência (exército e polícia), intensificou o ódio por mulheres após o fracasso do seu primeiro casamento, evoluiu para invasão, rapto e violação, perdeu qualquer medo de ser apanhado e os seus actos escalaram até ao homicídio. Não tinha medo da polícia, achava-se mais inteligente que todos. E foi até ser preso aos 72 anos. Está actualmente a cumprir pena.
Artigo interessante sobre a Michelle McNamara aqui.
O filme Os Inocentes é um dos meus filmes de terror favoritos. Desconhecia que era baseado no livro A Volta no Parafuso, do qual já muito tinha ouvido falar por ser considerado um marco dentro do género terror. Eis que há uns anos fez-se luz neste cérebro e acabei por perceber que o livro que queria ler era o mesmo que dera origem ao filme. Se por um lado fiquei muito entusiasmada por outro pensei "bem, já conheço a história, talvez o livro não funcione tão bem". Estava certa.
Como conhecia a história e a tinha bem presente, o efeito surpresa foi à vida; foi quase como uma releitura. Estava a ir a lugares que já conhecia, sabia o que ia acontecer em cada capitulo e o clímax final não foi na realidade um clímax, mas antes a recordação do final d'Os Inocentes, a preto e branco e tudo.
Adianta sequer escrever sobre o que trata o livro? É uma mulher que inicia um trabalho como educadora/ama numa mansão de um homem muito rico, tendo à sua tutela duas crianças. Há muito nevoeiro e bosques, um lago, e começam a acontecer coisas estranhas envolvendo as crianças, deixando as mulheres adultas entre o paranormal e a loucura.
Claro que este clássico merece ser um clássico, é uma história espectacular sobre fantasmas daí continuar a inspirar tantos filmes e séries - a última que me recordo é da Netflix: A Maldição da Mansão Bly.
O mal está em mim e não no Henry James. Aconteceu-me o mesmo quando li Frankenstein de Mary Shelley. Nada a apontar aos livros. Foram, apenas, leituras que não funcionaram para mim.
Die Wand (A Parede) é um dos meus filmes favoritos (que não são poucos, na realidade). Já lá vão uns bons anos desde que o vi pela primeira vez e qual não é o meu espanto quando soube que a Antígona editou o livro, com o mesmo nome, que deu origem ao filme e que, salvo erro, nunca tinha sido publicado em PT.
A Parede de Marlen Haushofer será, obviamente, uma prenda de natal de mim para mim própria. São as melhores prendas de natal de sempre! Espero que quem leia o livro vá depois procurar o filme, não se arrependerá.
Li Pageboy no início de Junho, durante as férias, entre piscina e protetor solar e é desta mistura que me recordo ao pensar nele. Estou uns meses atrasada no que toca a publicar por aqui as minhas opiniões. Outubro já comecou e só agora consegui sentar-me para escrever umas coisas. Espero até ao final do ano actualizar este meu canto e iniciar 2025 com as leituras correspondentes.
Pageboy é um livro autobiográfico, focado na existência de Elliot enquanto criança queer, que desde cedo teve noção de que não se encaixava no sexo/género atribuído à nascença e no que a sociedade, juntamente com a sua família, lhe exigia, a nível de comportamento, interesses e personalidade. Segue-se a passagem pela adolescência e primeiros anos da vida adulta, o universo cinematográfico, como é ser um actor tão jovem e assumir-se como homem trans sendo uma figura publica. Não ter uma família funcional que forneça apoio emocional já compromete a saúde mental de qualquer jovem, e sendo um adolescente trans, acrescenta toda uma dimensão de dificuldade e luta que muitas vezes compromete inclusive a própria compreensão e aceitação do que se é. Neste caso, Elliot explora muito bem a luta que travou, e em certo modo ainda mantém com alguns membros da sua familia, para que o entendam e aceitem.
É um livro de memórias e imagino que deve ser dificil para quem escreve filtrar o que é relevante e deve ser contado. Não estou 100% segura que este filtro tenha sido adquadamente executado. Em vários momentos da leitura senti que estava a ler ecos do que já tinha encontrando nas páginas anteriores. Dava para reduzir ligeiramente o volume do livro. Acho que os relatos se tornam confusos em alguns momentos, não sabendo bem em que momento da vida do autor os devemos situar, mas nada que comprometa a leitura. A escrita é simples e curta. Lembrou-me um diário ou uma longa conversa com alguém que acabamos de conhecer e nos conta a vida toda, com avanços e recuos, numa tarde. Uma partilha de situações seguidas de outras situações e mais outras tantas. Não é complicado ou com reflexões profundas, e também não precisa de sê-lo para validar a relevância que pode ter para quem está a ler. É na simplicidade do relato que este trabalho de Elliot me ganha como leitora, porque mesmo não tendo experienciado, nem de longe nem de perto, o mesmo que ele ao longo da sua vida, consegue-se sentir empatia e compreender facilmente o que nos procura transmitir.
Num mundo em que há tanta desinformação sobre a comunidade trans, relatos e biografias sobre estas pessoas tornam-se muito importantes para consciencializar e informar - aos que de facto tenham interesse em compreender realidades alheias. A literatura, como qualquer forma de arte, é um veiculo político. Que sejam publicados mais livros que acrescentem conhecimento, diminuindo o nível de ignorância colectiva em consequência. Só por isso vale bem apena ler este Pageboy.