Estou a rever Sopranos. No espaço de 4-5 anos é a terceira vez. Durante muito tempo resisti-lhe. Acreditava que o tema "máfia" se esgotava rapidamente, e após os filmes clássicos que toda a gente já viu pelo menos uma vez na vida, duvidava do que teria de tão fascinante ou original. Ser uma criança quando a série iniciou também não ajudou. Imaginava que fosse só violência, perseguições policiais e intrigas entre grupos. Sucede que o meu eterno camarada venera Sopranos e num momento de "não há nada de jeito para ver" seguiu-se um "vamos ver Sopranos, por favor, é agora, tu vais adorar!". E lá lhe fiz a vontade (depois da nossa filha é capaz de ter sido a melhor coisa que o homem me deu). Adiante, não vou estar a debitar reflexões sobre esta obra-prima das séries de televisão, até porque análises e criticas feitas por gente entendida há por aí aos pontapés. A verdade é só uma: The Sopranos é a melhor série de sempre e não levo a sério qualquer pessoa que tenha uma opinião diferente. Não quer isto dizer que não existem outras séries excelentes. Mas nenhuma atinge o brilhantismo que Sopranos encerra e é este brilhantismo que nos faz regressar para assistir com fascínio, uma e outra vez, à imensidão de conceitos, ideias e emoções que são exploradas naqueles episódios.
Decidimos rever a série após vermos o documentário que a HBO lançou este mês com David Chase, o criador da série. Acho que vai acontecer a muita malta o estranho e maravilhoso fenómeno chamado: saudade. É uma série tão marcante que a sentimos como se fosse um membro da família. Rimos, sofremos e choramos com ela. Logo, também temos saudades. Ver o documentário lembrou-nos que era bom combinarmos um jantar, ou neste caso rever, porque não se levam séries a jantar fora. Aconteceu-me o mesmo depois de ver o filme The Many Saints of Newark.
É um documentário bonito que aquece o coração e nos relembra que, às vezes, as mentes mais perturbadas (e a necessitar de terapia) são aquelas que nos oferecem verdadeiras obras-primas.
Há uma cena na história de Tony Soprano. Há o antes e o depois de ver The Sopranos. O mundo divide-se entre aqueles que viram, sentiram e compreenderam; os outros que viram e não perceberam patavina; por fim há o grupo dos que ainda não viram, nem a série, nem a luz (das séries, tipo têm a possibilidade de entrar no paraíso e obter sabedoria televisiva e cinematográfica a um nível só existente naquelas seis temporadas e não passam do limbo). Estão à espera do quê?
Requisitei Persona na biblioteca antes de ir de férias. Não conhecia Eduardo Pitta, penso que a sua obra incide mais na poesia, mas o tamanho pequeno, a capa apelativa e a temática (estava numa estante que reunia literatura queer) fizeram-me pegar nele, sendo o primeiro a ser lido da pilha que requisitei (por norma sempre o máximo de livros legalmente permitido). Foi uma boa surpresa. Às vezes consigo apreciar contos, mas é um género que muitas vezes me deixa com a sensação de que faltou qualquer coisa. Ora gosto muito, ora abandono.
O primeiro conto foi impactante. Teme-se o que acontecerá enquanto ansiamos que não se concretize. Nem todos os narradores-criança me convencem, às vezes exagera-se na infantilidade, que transmite uma postura muito categorizada da infância e da percepção que os adultos têm do que é ser criança - algo extremamente relativo. Gostei muito desta história.
O segundo conto não me convenceu, achei chato. As personagens são introduzidas rapidamente, fiquei confusa com quem era quem, muitos nomes para decorar numa história curta, várias referências, para ao fim ao cabo não acontecer nada de interessante.
O terceiro conto, pelo contexto histórico e político, foi uma leitura bastante satisfatória. Não me recordo de ter lido, até agora, uma história que relatasse como eram tratados os soldados homossexuais e a sua realidade durante a guerra colonial. A diferença entre classes e o jogo de influências também encaixou bem na história, que é harmoniosa do princípio ao fim e fiquei com pena que não fosse mais desenvolvida. Havia matéria para expandir mais um pouco os acontecimentos e aprofundar as personagens.
No geral foi uma boa leitura, estou de olho em Devastação para ler num futuro próximo.
Requisitei na biblioteca este Antifa em Quadradinhos. Continuo a tentar entrar no universo da BD, mas cada vez mais acho que não é a minha cena mesmo quando o tema tinha tudo para ser. É novamente o dilema do "não és tu, sou eu".
Talvez por não me apresentar nada de novo, como antifascista que sou, foi apenas uma leitura mediana. Penso que para quem desconhece como surgiram as lutas antifascistas, como se estabeleceram os núcleos de resistência durante as ditaduras, que acções foram postas em prática, etc., este livro é educativo, acima de tudo o resto. Reúne bastante informação histórica sem ser massacrante. Não gostei muito da parte artística, do estilo do desenho em si. O que vindo de alguém que não percebe grande coisa sobre banda desenhada, vale o que vale.
Toda a leitura tem mais valor se for para aprender qualquer coisa. Assim, indico este a todos os que falam da cena antifa como se tratasse de uma associação, que participa em manifestações e que os EUA consideram um perigo para a sociedade. Já tentei saber onde me posso fazer sócia da tal associação, mas depois percebi que não existe e que aquela retórica é só estupidez colectiva. Pessoas, digam todos juntos: antifa é só uma abreviatura, uma forma de um cidadão se identificar politicamente. Não há associação, nem grupo terrorista antifa*; antifas existem desde que o fascismo existe: antifas lutaram contra o fascismo na guerra civil espanhola, lutaram contra o nazismo na Europa e lutaram contra os movimentos nacionalistas dos anos 70-80, em França, na Inglaterra e um pouco por todo o mundo. Todo o democrata é antifa. Ser antifascista é defender a democracia e os seus valores daqueles que idolatram o autoritarismo e a repressão. Foi necessário, é necessário e continuará a ser necessário. No fundo, só há duas opções. Ou se é fascista ou se é antifascista. E se alguém falha em compreender algo tão basilar, bem...Talvez já façam parte de um dos lados e não o queiram assumir.
* Caso tenha lido isto e pensado "ah mas os antifa são super violentos, são iguais aos neo-nazis! extrema-esquerda e extrema-direita é tudo igual" ou qualquer verborreia similar, apenas pergunto: quantos antifa atacaram cidadãos nos últimos, vá, 10 anos? E depois de pesquisarem e encontrarem um total de zero casos, façam a mesma pesquisa para quantos neo-nazis assassinaram pessoas, individualmente ou em ataques colectivos, para o mesmo período do tempo. Está entendido não está? Ora essa, não precisa agradecer. Volte sempre!
Já escrevi e apaguei vários parágrafos. Não contaminar este texto com a minha opinião sobre religião/espiritualidade está a ser muito difícil. Respeito, obviamente, a liberdade religiosa de cada um desde que estas mesmas crenças não condicionem ou anulem as minhas liberdades e direitos como cidadã. E se deste livro se retiram várias reflexões, uma delas é exactamente como a Igreja Católica e os seus membros não têm o mesmo tratamento que uma pessoa comum perante o Estado e as suas leis.
O livro Roma, Temos Um Problema é uma leitura essencial para se compreender a raiz da problemática da sexualidade no contexto católico, como é que historicamente a Igreja lidou com a pedofilia e abuso de menores ao longo dos séculos, demonstrando um sistema articulado de protecção dos abusadores e branqueamento dos crimes. Tudo isto existe desde os primórdios do catolicismo, o que me deixou meio espantada, pois não contava que se encontrassem registos tão atrás no tempo sobre, por exemplo, que castigos se deviam aplicar a quem cometesse tais actos - ao estabelecer uma penalização reconhece-se a existência do acto e que esse mesmo acto é imoral e criminoso. Que o Vaticano tenha nos seus arquivos denúncias e relatos de crimes tão antigos demonstra que, ao contrário das declarações de vários dos seus representantes: 1. os abusos não são fruto da sociedade moderna, que se "teria afastado dos ensinamentos católicos" e por isso caído em desgraça; 2. deliberadamente se decidiu pela protecção dos ofensores, através de "programas de reabilitação e tratamentos" ou pela simples transferência para outra área geográfica, sem nunca os levar à justiça e, o mais monstruoso, sem os impedir de contactar com crianças.
O trabalho de investigação é excelente e coloca em perspectiva os mecanismos de defesa da Igreja e o desrespeito pelos sobreviventes, além da tentativa de silenciamento. Aponta várias referências, casos concretos e outros trabalhos jornalísticos e académicos. A estrutura e a escrita facilitam a leitura, que é feita de forma fluída sem se tornar demasiado pormenorizada. Fui lendo em simultâneo com outros livros, pelo simples facto de ser muito pesado ler de forma continuada sobre os abusos, e me causar tanta revolta, mantendo-me desperta quando já devia estar a dormir.
Em 2017 a Netflix oferecia-nos a série documental The Keepers, uma das melhores dentro do género. Recordo-me de ficar completamente vidrada enquanto ia avançando nos episódios. A série parte da investigação do homicídio de uma jovem freira e acaba a desvendar anos de abusos contra jovens adolescentes. Em 2006, a gigante Amy Berg realizava uma brutalidade de documentário: Deliver Us from Evil. Para mim este é o documentário a ver sobre abuso sexual a menores dentro da Igreja católica (nos EUA). É desesperante ouvir os relatos dos sobreviventes sobre os crimes e a reflexão sobre o impacto que os abusos tiveram na forma como vivem (ou não) a sua espiritualidade. Porque há um lado profundamente perverso na questão dos abusos serem cometidos por figuras que representam a sua fé, inclusive no uso dos próprios ensinamentos como justificação para os actos abusivos e para controlar as vítimas.
Em Portugal deram-se os primeiros passos na denúncia de tais crimes, muito recentemente e sem os números verificados noutros países (ainda). Não podemos esquecer a ligação entre a Igreja católica e o Estado Novo, o que acrescenta uma camada de dificuldade no escrutínio. Se olharmos para Espanha, que viveu uma realidade política muito semelhante à nossa, parece-me não só ingénuo como até desonesto as declarações dos representantes portugueses de que em Portugal os casos são mínimos, como se fossemos um oásis na tempestade. O regime repressivo, de baixa escolaridade, em que não se educava nem falava sobre sexualidade, dá-nos uma mistura perfeita para que as vítimas não procurassem ajuda, tão pouco reconhecessem o abuso e o denunciassem.
Não precisamos de mil casos nas igrejas portuguesas, nos escuteiros ou associações religiosas. Basta um caso. Um caso já é suficientemente grave. É preciso tempo e dar ferramentas à sociedade, através de disciplinas como a de educação sexual, para que se preparem as crianças e jovens a reconhecer comportamentos incorrectos e abusivos e, acima de tudo, a denuncia-los. Curiosamente há uma tendência de malta religiosa ser contra este tipo de educação de prevenção. Não é suspeito? Que temem?
É óptimo o trabalho do jornalista João Francisco Gomes.
Deixo aqui o relatório final Dar Voz ao Silêncio da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, de Fevereiro de 2023.