Tinha Vista Chinesa debaixo de olho desde a sua publicação. A temática interessa-me muito e sabia que mais cedo ou mais tarde acabaria por lê-lo, comprado ou através da biblioteca. Foi por isso uma felicidade imensa quando o recebi a partir do clube de leitura da Greta Livraria. Este não ficou a ganhar pó na estante aguardando a sua vez, pelo contrário, passou à frente dos seus pares e foi lido pouco tempo após me ter chegado.
A minha opinião sobre esta leitura não só é igual à da grande maioria dos leitores, como me parece que pouco ou nada acrescenta à dimensão do que se pode ou não retirar desta história. Ou seja, aquilo que é narrado vale por si só a leitura. O que para mim tem imenso valor. Às vezes apanho no Goodreads comentários a livros biográficos ou que relatam uma história real, que apontam a dificuldade que o leitor tem em "avaliar" a leitura. Isto faz e não faz sentido para mim; o leitor sente-se limitado pela percepção que se pode ter da avaliação feita, como se desvalorizasse a realidade relatada. Não queremos que outros pensem que somos um cubo de gelo que não simpatiza com o sofrimento alheio. No entanto, ao avaliar a leitura, não estamos necessariamente a avaliar a experiência que o autor/individuo viveu, mas sim como o livro funcionou connosco, o que nos transmitiu, a escrita, etc., um conjunto de particularidades a que cada leitor poderá dar mais ou menos valor. Também não somos críticos literários, não temos assim tanta responsabilidade. Eu pelo menos não me coloco nesse lugar. E falo disto porque, em Vista Chinesa, terminei completamente incapaz de analisar aquelas tais particularidades, tão envolvida que estava na história, sentindo apenas que me encontrava perante um livro do caraças. E não há nada que pague esta sensação maravilhosa.
Li-o num domingo à tarde. É um livro curto, penso não chegar às 100 páginas. A naturalidade e o realismo com que a narrativa se desenrola contribuem para uma experiência extremamente visual, mesmo sem ter grandes descrições do ambiente em que as cenas se desenrolam. Toda a história funcionou, dentro da minha cabeça, como um documentário. Para quem, como eu, já ouviu e leu relatos de violações e abuso sexual em número suficiente (fãs de true crime compreenderão) antecipa facilmente os passos da narradora, as dificuldades e os traumas. É aqui que a história me ganha: na dureza dos pormenores, da realidade retratada, que infelizmente, nem sempre encontro com a mesma honestidade noutras obras. Por isto é um livro necessário. Não tenho grande esperança na humanidade pelo que temo que seja ainda necessário por bastante tempo*.
Mais um livro curto que se revela um favorito. Estou a desenvolver uma preferência descarada por livros pequenos.
Não sou pessoa de poesia. É uma falha como leitora que reconheço. Ainda assim li Decadência. Apaguei por completo da memória. Encontrei como livro do dia na FLL o Satânia. Por ser prosa, foi uma leitura muito mais apelativa. Reúne dois contos, Satânia e Insaciada, e a conferência De Mim.
Como aqui já referi quando escrevi sobre Maria Archer, frequentei um curso online da Bertrand dado pela Lúcia Vicente, referente a estas duas escritoras. Estava a fazer a colecção do Público* sobre escritoras portuguesas censuradas durante o Estado Novo, comprei o Decadência, que salvo erro foi dos primeiros a sair. Pouco ou nada sabia sobre Judith Teixeira. Neste artigo do Público sobre como vivia a comunidade lgbtqi+ em Portugal durante o Estado Novo e nos anos que o antecederam, temos um resumo da perseguição que a escritora sofreu:
Vou poupar-vos à minha opinião sobre grupinhos religiosos. Judith, que até ao ataque destes virgens ofendidos, era até bem considerada nos círculos literários e na classe instruída consumidora das artes, continuará a ser atacada e sem que ninguém a defenda, ao contrário do que sucedeu com os outros escritores visados pela Liga.
Perdeu-se a Judith que, de 1927 a 1959 (ano da sua morte), nada mais escreveu. De Satânia, gostei mais do primeiro conto do que do segundo mas o que achei realmente interessante foi a conferência De Mim, em que a escritora defende uma escrita livre de amarras sociais, honesta e longe do moralismo vigente. É um texto, quase um manifesto, em defesa da liberdade criativa, do futurismo e de si própria.
Actualmente encontram-se online alguns estudos feitos sobre a sua obra e vida (do pouco que se conhece). Sobre a sua bissexualidade ou homossexualidade há duas linhas: os que a consideram lésbica e vêem na sua obra a honestidade de quem escreve sobre si própria ou os que analisam os seus escritos no contexto patriarcal, onde a mulher é fruto do desejo, e nesse caso, Judith escreveria da mesma forma que os seus pares escritores, apesar de ser mulher; esta segunda tese também se apoia no caso de Judith ter sido casada duas vezes, o que para mim é completamente irrelevante - muitos homossexuais e lésbicas vivam em relacionamentos heterossexuais, cumprindo assim a norma para evitar a ostracização social. No fundo nunca saberemos mas faz-me sentido que na incerteza e pelo conteúdo da sua obra seja pelo menos inserida na categoria de literatura queer/lésbica.
Este livro foi uma leitura agradável, ainda que a dose de sentimentalismo e tragédia, presente nos dois contos, seja em demasia para esta leitora.
*Neste ponto já estou fartinha de escrever sobre a colecção aqui, ainda por cima está esgotada, pelo que nem aparece no site do jornal, para conseguir redireccionar para lá quem tiver interesse.
Não vou dizer absolutamente nada de novo ou original sobre este Leme. A leitura seguiu no registo praticamente igual à de todos os leitores, a julgar pelas opiniões que fui encontrando.
Lê-se muito bem, não só porque é um livro pequeno, mas porque a história é envolvente. A escrita simples e directa cria um ritmo de leitura rápido. Trata uma realidade dura e pouco explorada no panorama português, principalmente no registo de auto-ficção.
É muito bem conseguida a exploração da complexidade da relação sobrevivente-abusador, pela perspectiva da criança/adolescente que se torna vitima por proximidade, cheia de zonas cinzentas e limitada pela sua percepção infantil/imatura do contexto familiar em que está inserida.
A desmistificação da ideia do vilão, da pessoa que é 24H/24H um monstro horrível (às vezes é, outras nem por isso), o grau de tolerância que vai diminuindo conforme a violência aumenta (e aumenta sempre) até que a vivência se torna impraticável, o ar irrespirável e a extensão do que se viu e ouviu ganha contornos e sequelas que ficam de forma permanente, que se tenha consciência ou não. O transtorno de personalidade narcisista, que é uma marca comum em agressores (principalmente nos que são mestres na manipulação, violência psicológica e verbal) é retratado de forma muito realista.
Foi uma boa leitura. Estou cada vez mais fã de livros pequenos (apesar de neste momento estar a ler um calhamaço japonês). Vou ver se deito a mão ao Deriva.
Já aqui mencionei o meu interesse em ler escritoras portuguesas. Há uns anos comprei naquelas feiras nas estações de metro, o livro 100 Portuguesas com História de Anabela Natário que desde então está na minha mesa de cabeceira. É a leitura mais demorada de sempre no meu reportório. Entre livros, principalmente naqueles que me deixam inquieta após finalizar a leitura, costumo ler algumas páginas do 100 Portuguesas. Fico sempre impressionada com a capacidade de: 1. preservar-se informação ao ponto de 2. uma investigadora conseguir reuni-la e dar-nos a conhecer existências fascinantes que para o cidadão comum são absolutamente desconhecidas.
Portanto, quando digo que quero descobrir mais escritoras portuguesas são as escritoras desconhecidas ou pouco recordadas que me interessa particularmente ler. Carmen de Figueiredo é o pseudónimo de Carmelinda Miolet Morena de Figueiredo, nascida em 1916 e falecida a 2006. Escreveu quinze romances, três livros de contos e uma novela.
Eu tenho três: Vinte Anos de Manicómio (colecção Público), Colégio de Rapazes (1955) e O Muro de Cristal (1958). Ainda só li o primeiro e foi uma leitura agradável. A escrita é muito acessível, sem floreados aborrecidos, com umas pitadas de sarcasmo, crítica social e um certo erotismo que valeram à escritora a censura da PIDE.
Os senhores do regime ficaram desagradados por uma mulher ousar escrever sobre sexo, infidelidade e coisas assim, ainda por cima num estilo mais "masculino".
A história começa com Bento e Lídia, que se mudam para Lisboa para explorar uma mercearia e aí garantir uma educação adequada e um futuro digno à sua filha Lourdes. Esta está mais para mulher independente do que doce e recatada do lar. Representa ainda a mulher sexual e erótica, muito longe da representação que o regime defendia, da mulher casta, obediente, assexual, materna. A figura da mulher é desconstruída ao associar-lhe comportamentos amplamente aceites/justificados no género masculino mas negados no feminino. Por exemplo, Bento é infiel à sua esposa e incapaz de ter sexo com ela, no entanto recusa que a filha Lourdes mantenha as mesmas praticas (recusa de sexo ao esposo mantendo relações extraconjugais) pelo simples facto de ser mulher. A infidelidade e desapego de Lourdes acabam por conduzir o marido João Lúcio a um estado de doença física e mental, sendo posteriormente internado num manicómio, falsamente acusado de loucura.
A personagem de João Lúcio é curiosa, tão ao mais que a de Lourdes. A autora atribui-lhe características que estavam quase exclusivamente associadas à condição feminina: o histerismo, a depressão, ataques de pânico, insónias...É enclausurado durante vinte anos numa "casa de loucos" para que a sua esposa consiga viver os seus romances sem a opressão do matrimónio. Só consegue a liberdade fingindo a própria morte e mesmo livre não supera a existência sofrida, optando pelo suicídio.
Estas dinâmicas são por isso muito interessantes, principalmente olhando para a época em que a escritora viveu e publicou.
Não posso, ainda assim, dizer que considero este livro uma obra extraordinária. As personagens são rasas, não apresentam qualquer conflito interior, permanecem iguais do início ao fim do livro. Não há desenvolvimento nem picos de intensidade. Faltou alguma complexidade na estruturação da história, mais zonas cinzentas para puxar o realismo.
Os únicos livros que foram editados recentemente, através das colecções Censura no Feminino (2021) e na Biblioteca da Censura, são Vinte Anos de Manicómio e Famintos. Com uma produção tão numerosa, que justificação haverá para não se investir na publicação dos seus livros? O que leva a que nenhuma editora portuguesa o faça? Tirando os que, como eu, compram em alfarrabistas e tem a sorte de ainda encontrar alguns velhos exemplares, tão pouco têm a oportunidade de conhecer o seu trabalho. E sim, novamente, existem bibliotecas. Na minha rede, por exemplo, há cinco livros da autora para requisição. Cinco livros entre dezanove obras. É uma oferta ainda assim limitada. Estas duas opções (alfarrabistas e bibliotecas) partem sempre da procura do leitor. É preciso que o leitor conheça para que procure. E como se conhece uma escritora apagada, sobre a qual pouco se sabe? Eu própria só chego a estas escritoras após primeiro me interessar, procurar informações, listar obras e de tempos a tempos comprar os livros possíveis, mediante a oferta no mercado alfarrabista.
Repito-me: são escritoras que viram os seus trabalhos retirados de circulação pela ditadura, que colocaram em causa a sua própria integridade para escreverem estas histórias. Décadas depois: ninguém as conhece. Não são lidas. Não são estudadas. Tão pouco celebradas pela sua coragem de tentar sobressair numa área de homens, onde homens decidiam o que elas podiam ou não criar. É de lamentar.
Trabalhos muito interessantes sobre a escritora e as suas obras Vida de Mulheraqui e Famintosaqui.
Devia ser mais disciplinada nisto de debitar aqui opiniões sobre leituras. Já se passaram uns meses sobre a leitura de A Solidão dos Números Primos e agora estou num limbo sem saber muito bem o que escrever.
Recordo-me de ainda no Instagram apanhar várias referências positivas e ficar levemente curiosa sobre o que trataria esta história. Entretanto comprei-o, já não me lembro se na FLL 2023 ou se numa ida à Livraria Solidária de Carnide. Ficou junto dos outros (que não são poucos) a aguardar a sua vez.
Às vezes só temos a ganhar em chegar tarde a algo que já foi lido, visto e aclamado, por muita gente. Fugir um bocadinho ao hype para melhor aproveitar a dimensão que a obra encerra, seja na literatura, cinema ou música. Uma coisa boa será sempre boa, passe o tempo que passar. Li-o em Maio e foi uma experiência muito satisfatória. Tristeza e melancolia na dose certa para me sentir feliz.
Alice e Mattia são personagens perturbadas por vivências traumáticas e lidam, cada um à sua maneira, com os ecos do que são, do que a sociedade e família esperam que se tornem e do que pretendem, eles próprios, ser e construir. A inadaptação na infância e adolescência que tantas vezes se estende para a vida adulta. Estas dificuldades são exploradas de forma bem realista, notando-se a proximidade do escritor com as suas memórias e experiências, na caracterização das personagens.
A fase adulta, principalmente nos primeiros anos, correspondente ao meio da narrativa, esmoreceu um pouco o meu entusiasmo. Achei que a paixão de Alice pela fotografia podia ter sido mais desenvolvida, aliás, nem sequer a considero uma paixão em comparação com o fascínio de Mattia pela matemática. Parece mais uma coisa na qual ela se envolve, apenas. Tal como o seu casamento. A ausência de paixões em Alice é a sua catarse, o veiculo para lidar com a ausência de amor em que cresceu, com a sua deficiência e a perda da mãe. Mattia, pelo menos, tem os números.
A incógnita sobre o rumo das personagens, que relações iam ser estabelecidas ou quebradas, transmitiu-me uma certa lufada de ar fresco. É uma história original, não demasiado alternativa ao ponto de ser estranha, mas sim cativante; mantive-me focada na leitura, envolvida na complexidade de sentimentos e emoções. Fui sendo agradavelmente surpreendida até ao final. Terminei a leitura com aquela sensação amarga de ainda querer permanecer dentro do livro mais um bocadinho.
Penso que com a passagem do tempo A Solidão dos Números Primos se tornará um favorito. Percebi que há um filme baseado na obra e tentarei vê-lo brevemente.
"Comprei o Lealdades. Não o devo ler para já, vou fazer render este meu novo fascínio mais uns tempos." Dizia eu em Abril, após descobrir a Delphine. Sou uma contradição ambulante sem solução.
Lido em Maio, seria desonesto da minha parte compara-lo ao A Partir de Uma História Verdadeira (opinião aqui). Não fui arrebatada por esta história, nem senti que estava perante algo inovador ou genial. O que não quer dizer de forma alguma que foi uma experiência negativa. Pelo contrário, gostei bastante. A perspicácia com que Delphine cruza as várias histórias (de théo, da professora, de Mathis e da sua mãe), alternando entre narradores, prende-nos de imediato. É um livro pequeno (mais um!) que funciona perfeitamente. Escrito na medida ideal para não comprometer a atenção do leitor, sem cair na armadilha do moralismo fácil.
Vi o filme A Sala de Professores enquanto lia Lealdades. Inconscientemente associei a professora do filme à personagem com a mesma profissão no livro. Acabei por fazer alguns paralelismos entre ambos. A relação professor-aluno e a barreira entre o trabalho e a esfera pessoal, quando envolve situações de traumas e existências fragilizadas, pode facilmente ser ultrapassada e a envolvência ir além do razoável. Não é fácil depararmos-nos com injustiças em meio escolar e sentir que qualquer acção nos é interdita. No livro a problemática é mais bem explorada, a linha finíssima entre a preocupação e a intervenção abusiva, com as óbvias consequências e culpas, funcionou muito bem.
Percebi pelas críticas que li que nem todos apreciaram o final "aberto". Para mim encaixou bem, não preciso saber concretamente em que nível a tragédia se vai desenrolar no futuro da personagem, mesmo crendo num final feliz, terá sempre de lidar com os seus traumas e a extensão das suas acções.